Mentir Não é Nem Certo Nem Errado: Não Há Normas

Uma das alternativas a esta pergunta é negar a

existência de quaisquer normas éticas relevantes. Esta posição é chamada
antinomismo (literalmente, “contra a lei”). Afirma que não há nenhum
princípio moral (tal como “não se deve mentir”) que possa,
validamente, ser aplicado ao caso de Bucher, e mediante o qual se pudesse
pronunciar sua ação como certa ou errada. E se não houver padrões morais, não
pode haver julgamentos morais. Logo, Bucher não estava nem certo nem errado
segundo a ética. O que ele fez pode ter sido pessoal, militar ou nacionalmente
satisfatório, mas não pode ser declarado moralmente bom ou mau.

Há várias maneiras segundo as quais um ato de mentir
pode ser “justificado”, mas não há nenhuma maneira pela qual possa
ser objetivamente julgado. Isto
porque, segundo o ponto de vista antinomista não existe nenhuma norma objetiva
mediante a qual o julgamento possa ser feito. A mentira de Bucher, por exemplo,
pode ser “justificada” por meio de apelar para seus resultados sobre
sua tripulação ou seu país. Ou pode ser “justificada” subjetivamente
como uma decisão autêntica que escolheu fazer. Mas em caso algum estas
consequências pragmáticas ou escolhas pessoais seriam critérios morais
objetivamente válidos para concluir que sua escolha foi correta. De fato, as
considerações subjetivas que eram “boas” para a tripulação de Bucher
e para seu país, eram, concomitantemente “más” para o país inimigo,
ou seja à medida em que se sabia que a confissão era falsa. Quando não há
padrões morais objetivos que transcendem a subjetividade de indivíduos e
nações, então não há maneira objetiva de declarar um ato moralmente bom ou mau,
num sentido objetivo.

Noutras palavras, faltando quaisquer normas morais
objetivas, as ações de Bucher poderiam ser consideradas boas ou más, dependendo
da perspectiva da pessoa. E de um ponto de vista global, sua mentira não foi
nem boa nem má. Realmente não há ponto de vista global ou objetivo. Se
existisse semelhante perspectiva global, então seria possível fazer um
pronunciamento objetivo sobre a ação, quanto a ser ela realmente certa ou
errada. Mas visto que não há padrões objetivos, não se pode dizer que a mentira
de Bucher foi certa ou errada.

B. Mentir É Geralmente Errado: Não Há Normas
Universais2

A maioria das posições éticas evita a posição
antinomista contra todas as normas objetivas. Uma maneira de fazer isto sem
condenar a mentira de Bucher é sustentar que mentir é, geralmente, mas não
sempre, errado. Este ponto de vista será chamado generalismo. Ou seja: mentir é
errado como regra geral, mas há ocasiões em que a regra deve ser quebrada,
viz., quando um bem maior é realizado, e salvar uma vida é certamente um bem
maior. Que a pessoa não deve contar uma mentira é objetivamente significante
mas não é universal. Nalgumas circunstâncias, a pessoa deve mentir. Logo, este
princípio moral (e outros também) é geralmente, mas não universalmente, válido.
Ou seja: dentro do alcance dos princípios éticos, são objetivamente válidos.
Mas as normas éticas não são universais, há exceções.

Existem muitas razões possíveis para sustentar o
generalismo, i.e., que as normas éticas não são universais mas, sim, admitem
algumas exceções. Uma razão básica é que, havendo duas ou mais normas gerais
que entram em conflito (tais como contar a verdade e salvar vidas) as duas não
podem aparentemente ser universais. Pareceria que deve haver pelo menos uma
exceção a pelo menos uma delas, visto não ser possível seguir as duas. E se houver
exceções a todas elas (ou mesmo todas menos uma), então não há muitas normas
universais. Na melhor das hipóteses, todas (ou pelo menos uma) as normas éticas
objetivas devem ser gerais, mas não podem ser, todas elas, princípios
universais.

Se falar a verdade for somente uma norma geral,
então quando é correto mentir? O generalista pode responder a isto de
diferentes maneiras. Uma resposta comum é sugerir que é correto mentir quando o
mentir realizará um bem maior do que não mentir. Esta abordagem é utilitária. O
mentir é utilizado para levar a efeito um maior bem para um número maior de
pessoas. Outra razão porque alguém pode considerar contar a verdade apenas uma
normal geral, mas não universal, é que há um princípio sobrepujante para se
observar, devido ao qual às vezes é necessário contar uma mentira. Se, no
entanto, houver pelo menos uma norma universalmente objetiva, então já não há
um generalismo completo. Pelo contrário, é um universalismo de uma só norma, o
que nos leva à posição seguinte.

C. O Mentir Às Vezes É Certo: Há Uma Norma Universal3

O ponto de vista de que há uma só norma universal
diante da qual às vezes é correto mentir, é realmente, um absolutismo, mas por
razões circunstanciais será chamado de situacionismo. É chamado de
situacionismo não somente para distingui-lo doutras formas de absolutismo (que
sustentam que há muitas normas universais, em contraste com somente uma) mas
também porque os defensores do ponto de vista lhe dão esse nome. O nome
“situacionismo” é algo descritivo. Lembra-nos que, visto que as
circunstâncias são tão radicalmente diferentes, pode haver somente uma norma
universal capaz de adaptar-se a todas elas. Argumenta, pois, que só uma coisa
pode ser verdadeiramente universal a todas as situações. Se houvesse mais de uma
norma universal, haveria um conflito, e uma exceção teria de ser feita para
resolver o conflito. E se uma exceção pode ser feita a todas as normal menos
uma, então somente uma norma pode ser verdadeiramente universal.

Quanto à mentira de Bucher para salvar vidas, o
situacionista afirma que é certa, porque o Comandante Bucher estava agindo de
acordo com a norma mais alta e a única verdadeiramente universal.
Frequentemente se diz, embora não necessariamente, que é uma norma absoluta do
amor. Segundo esta maneira de declarar a norma, Bucher estava justificado por
mentir por amor. Mentir era a coisa amorosa para se fazer a fim de salvar
aquelas vidas. Sua mentira é julgada certa porque está de acordo com a única
norma ética absoluta que existe, viz. o amor. Uma mentira poderia ser errada se
fosse contada sem amor, i.e., egoisticamente (e.g., para encobrir o mal da
própria pessoa). Mas se a mentira for contada com altruísmo, por amor aos
outros, então é moralmente correta, conforme a norma do amor.

Segundo este ponto de vista, o fim realmente
justifica os meios, se os “meios” forem a norma do amor. Na
realidade, somente o fim justifica os meios. Nada, pois, senão a norma absoluta
do amor torna um ato moralmente correto. E nada senão a falta do amor torna um
ato moralmente errado.

D. Mentir Sempre É Errado: Há Muitas Normas Não-Conflitantes4

Sustentar uma única norma universal não é a única
posição possível com respeito a princípios absolutos. Existe o ponto de vista
de que há muitas normas universais válidas que nunca conflitam realmente entre
si. Esta posição será chamada de absolutismo nãoconflitante. Pode haver um
conflito aparente entre duas normas éticas, mas nunca um conflito entre
deveres. Há sempre uma terceira alternativa ou um modo de cumprir uma das
normas sem desobedecer à outra. O domínio de cada norma ética tem sido ideal ou
providencialmente alocado a ela de modo que nunca realmente coincida
parcialmente com o de outra norma universal. Isto significa, por exemplo, que o
mentir e o matar nunca entram realmente em conflito. Sempre se pode contar a
verdade sem realmente tirar a vida doutra pessoa inocente. Tanto o mentir
quanto o matar sempre são errados.

Se for assim, o que o Comandante Bucher deveria ter
feito? Se não deveria mentir em circunstância alguma, então, qual curso de ação
deveria ter seguido.5 Há várias coisas que Bucher poderia ter feito
de modo consistente com esta posição, mas em circunstância alguma deveria ter
contado uma mentira para salvar as vidas da sua tripulação. Poderia ter mantido
silêncio. Ou soja: poderia ter-se recusado a fazer qualquer confissão falsa. Ou,
poderia ter falado a verdade (viz., que estava fazendo espionagem) mas não ter
falado a mentira de que sua embarcação estava nas águas territoriais coreanas
quando não estava realmente ali. Se esta confissão não fosse aceitável aos
interrogadores, então Bucher e seus homens teriam de sofrer as conseqüências de
contar a verdade e rogar misericórdia. Ou, poderia ter orado pedindo a
intervenção divina para eliminar o dilema.

Mas as conseqüências de contar a verdade não são um
mal maior, viz. a matança de pessoas inocentes? Uma resposta direta a este
dilema, que é perfeitamente consistente com esta posição (de que há muitas
normas universais não-conflitantes), é que matar é errado, mas contar a verdade
que leva outra pessoa a matar não é errado. Quer dizer, Bucher não tinha dilema
moral algum. Sua escolha não era: “Contarei uma mentira ou matarei?” Pelo contrário, sua
escolha era: “Contarei uma mentira ou permitirei a possibilidade de que
outra pessoa seja morta?” E visto que Bucher não poderia ter certeza absoluta
de que os norte-coreanos matariam sua tripulação, e visto que ele pessoalmente
não estaria matando, ele seria absolvido da responsabilidade moral. Segundo
este ponto de vista, Bucher não poderia ser considerado moralmente culpado pelo
mal que outros homens fariam porque ele contara a verdade. Na realidade, os
proponentes deste ponto de vista podem apelar a algum tipo de teleologia ou
providência que diz que um mal maior nunca virá (ou pelo menos em última
análise, não imediatamente) por causa de guardar uma norma universal. Em termos
teístas, Deus sempre providenciará um modo de escape de modo que a pessoa ou
não terá de mentir ou um mal maior não virá do contar a verdade.

E. Mentir Nunca É Certo: Há muitas Normas
Conflitantes6

Outra saída do dilema aparente, de sustentar que há
muitas normas universais que às vezes conflitem entre si, é declarar que uma
violação de qualquer delas é errada. Ou seja: é sempre errado mentir e também é
sempre errado tirar uma vida inocente (ou é até errado não procurar evitar que
outra pessoa faça um ou outro destes atos), e se alguém for preso num
verdadeiro dilema entre os dois, deve praticar o menor dos dois males. O menor
dentre dois males pode ser julgado por aquilo que resultaria no número menor de
conseqüências más, i.e., de maneira utilitária. Mesmo assim, os dois atos
(mentir e matar) são intrinsicamente maus; nenhum dos dois está certo, de
acordo com as normas universais. E mesmo se houvesse alguma maneira de julgar
qual ato é intrinsecamente (e não meramente instrumentalmente) melhor, os dois
ainda seriam errados, não obstante. Um deles, no entanto, provavelmente seria
um mal menor do que o outro. 

Segundo este ponto de vista, Bucher teria sido errado
não importa qual das duas únicas alternativas possíveis adotasse. Apesar disto,
ainda que o mal fosse inevitável para ele, também era desculpável, especialmente porque escolheu dos dois males o menor.
O teísta cristão talvez diria que para Bucher, o pecado era inevitável, porém
perdoável. Ele devia cometer o pecado menor (seja este julgado intrinsecamente,
seja extrinsecamente) e depois colocar-se de joelhos e confessá-lo.

Idealmente, se ninguém quebrasse qualquer das normas
universais, não haveria qualquer conflito entre elas. Muitos dilemas morais se
estabelecem porque alguém está, pecaminosamente, forçando outra pessoa para uma
posição em que esta outra terá de escolher entre duas normas universais. Visto,
porém, que o mundo está caído, e que há um conflito, somente a expiação ou o
perdão de Deus pode resolver o problema.

É difícil
dar a este ponto de vista um nome descritivo. Será chamado o absolutismo ideal,
porque acredita em muitos absolutos que idealmente não entram em conflito mas
que realmente (por causa dos pecados dos outros ou dos próprios pecados da pessoa
envolvida) às vezes entram em conflito. Mas por causa da sua conexão com o
pecado e por causa da sua resolução final no perdão, este ponto de vista também
poderia ser chamado o absolutismo hamartiológico (que diz respeito à doutrina
do pecado) ou o absolutismo soteriológico (que diz respeito à doutrina da
salvação).

F. Mentir Às Vezes É Certo: Há Normas Mais
Altas7

Outro modo de responder a este problema ético
escolhido como amostra pode ser chamado o hierarquismo. Pode ser argumentado,
e.g., que há muitas normas éticas universais, mas que não são iguais na sua
importância intrínseca, de modo que quando duas entram em conflito, a pessoa é
obrigada a obedecer o mais alto dos dois mandamentos. Desta maneira, portanto,
na escolha entre matar e mentir, sendo que as duas ações são universalmente
erradas na ausência de qualquer conflito entre elas, devese escolher poupar a
vida, por ser ela um valor intrinsecamente mais alto. Contar a verdade é bom,
mas não ao custo de sacrificar uma vida.

Segundo este ponto de vista, a mentira de Bucher foi
certa, embora o mentir em si mesmo seja universalmente errado, porque há uma
norma ética mais alta do que falar a verdade, viz. salvar vidas. Bucher seguiu
a norma intrinsecamente mais alta quando achou duas normas universais em
conflito. A boa ação é sempre aquela que é intrinsecamente melhor.

Este ponto de vista é semelhante a vários outros
pontos de vista já mencionados, embora diferente. Primeiramente, difere do
ponto de vista imediatamente precedente chamado absolutismo ideal. O
absolutismo ideal sustenta que as duas alternativas estão erradas quando entram
em conflito, ao passo que o hierarquismo argumenta que uma é certa, viz.,
aquela que é intrinsecamente mais alta. Segundo o primeiro ponto de vista, as
duas alternativas são erradas, mas o homem deve fazer dos males o menor.
Segundo esta última posição, pelo menos uma alternativa é certa, e o homem deve
fazer o máximo bem possível.

Além disto, o hierarquismo deve ser distinguido do
situacionismo, pois aquele sustenta que há muitas normas universais (embora as
inferiores às vezes devam ser suspendidas a favor das superiores) e o
situacionismo sustenta que há somente uma norma universal. Estas muitas normas,
conforme o conceito hierárquico, são universais na sua área, posto que não entrem em conflito com outra área. São
universais dentro do alcance daquele
relacionamento,
a não ser que haja um conflito de relacionamentos. O
hierarquismo sustenta que mentir, como
tal,
sempre é errado, mas que mentir, transcendido
por salvar vidas, não é errado. Na realidade, no último caso não se trata,
efetivamente de mentir (no senso de ser alguma coisa errada); é justificável
falsificar por amor a salvar vidas. Nas circunstâncias de Bucher, dar as
informações erradas era a coisa certa a ser feita porque era agir segundo uma
norma ética mais alta.

Finalmente, o hierarquismo difere do generalismo
sendo que aquele argumenta que há muitas (i.e., pelo menos duas) normas éticas
universais que não são meramente princípios gerais. Há isenções da guarda de normas inferiores (viz., quando entram em
conflito com as normas mais altas), mas não há exceções às normas inferiores. Tirando emprestada uma ilustração do
âmbito natural, não há isenções à lei da gravidade para os corpos físicos, mas
um prego pode ficar isento de “obedecer” à lei da gravidade mediante
sua “obediência” a força física mais alta de uma imã.

G. Resumo e Comparação das Alternativas

Há outro ponto de vista possível, viz., “Mentir
é sempre certo”, mas não será considerado com detalhes por duas razões
básicas. Primeiramente, porque não é proposto com seriedade por qualquer
filósofo ético contemporâneo de relevância, ao que saiba o presente autor. Em
segundo lugar, a posição derrota a si mesma. Se, pois, todos mentissem, não
existiria verdade acerca da qual se pudesse mentir, e, neste caso, já não seria
possível cumprir a ordem no sentido de mentir. Além disto, se a pessoa deve sempre mentir, então presume-se que o
autor da declaração está seguindo seu próprio conselho, e, neste caso, devemos
entender que o inverso disso seja a verdade na questão. Mas se o inverso for
verdadeiro, então, não se deve sempre mentir. Destarte, voltamos para a questão
de quando se deve mentir e quando não se deve, que é a questão que os demais pontos
de vista estão examinando. Finalmente, se o autor do universal ético
“Deve-se mentir sempre” fosse dar a declaração da maneira em que
realmente deveria ser dada (i.e., veridicamente), então não estaria seguindo
seu próprio princípio, sendo, portanto, inconsistente. Em qualquer uma das
eventualidades, portanto,* se a norma for seguida ou não, derrota-se a si
mesma.

Estes seis pontos de vista podem ser resumidos pela
seguinte comparação. O antinomista expõe um ponto de vista para a exclusão de todas as normas éticas,
sejam elas universais, sejam elas gerais. O generalista diz que há normas
objetivas, mas que todas têm exceções. O
situacionista insiste em uma só norma universal exclusiva, reconhecendo facilmente que todas as demais são, na
melhor das hipóteses, apenas gerais. Do outro lado, o absolutista
não-conflitante argumenta em prol de muitas normas universais que nunca se
sobrepõem realmente, deixando sempre uma via de escape do suposto dilema moral. Apegando-se a muitas normas
universais que na realidade conflitam entre si (embora idealmente não o
fariam), o absolutista ideal diz que praticar o mal é inevitável porém desculpável, especialmente se alguém
cometer o menor dos males. Finalmente, o hierarquista aceita muitas normas
universais conflitantes que são dispostas de acordo com o valor intrínseco e,
tendo em vista as mesmas, o homem tem uma isenção
de observar a norma inferior em virtude de agir de acordo com a norma
superior. Os seis capítulos que se seguem serão dedicados a uma discussão mais completa
destas alternativas éticas.

Todas estas alternativas giram em torno de normas
éticas. Na realidade, contudo, há outra abordagem à ética que não ressalta
normas, mas, sim, fins. 

conteudo retirado do livro: Ética Cristã – Norman Geisler

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