ANTROPOLOGIA DA IDADE MÉDIA

Louis-Berkhof

1. IDÉIAS DE GREGÓRIO O GRANDE 

Gregório o Grande, nascido em Roma cerca de 540, era estudante
diligente de Agostinho, Jerônimo e Ambrósio. Suas inclinações religiosas levaram-no a renunciar ao mundo, e após o falecimento de seu pai
ele devotou suas riquezas a boas obras, particularmente à ereção de
mosteiros, para a promoção de uma vida puramente contemplativa.
Tendo sido eleito papa por unanimidade, em 590, só aceitou a posição
com grande relutância. Embora não fosse pensador original, tomou-se
autor de grande reputação e muito fez por disseminar a sã doutrina.
Depois de Agostinho, foi a autoridade de maior influência na Igreja. De
fato, durante a Idade Média, Agostinho era entendido somente conforme interpretado por Gregório. Por essa razão, a história da doutrina na
Idade Média forçosamente começa com ele.
O agostinianismo de Gregório era um tanto atenuado. Ele explica a
entrada do pecado no mundo através da fraqueza humana. O primeiro
pecado de Adão foi um ato livre, no qual desistiu do seu amor a Deus
e tomou-se sujeito à cegueira e à morte espirituais. Através do pecado
do primeiro homem, todos os homens se tomaram pecadores e, como
(ais, sujeitos à condenação. Isso soa como Agostinho, mas Gregório
nunca levou essas idéias à sua conclusão lógica. Ele considerava o
pecado mais como uma fraqueza ou doença do que como culpa, e
ensinava que o homem não perdera a liberdade, porém somente a
bondade da vontade. Paralelamente a isso, todavia, ele frisava que sem
a graça não pode haver nem salvação e nem quaisquer méritos
luimanos. A obra da redenção tem início com a graça de Deus. A graça
preveniente faz os homens quererem o bem, e a graça subseqüente
capacitam-nos a pô-lo em prática. A transformação do homem começa
no batismo, o que cria fé e cancela a culpa dos pecados passados. A
vontade é renovada e o coração se replena do amor de Deus, e assim o
homem é capacitado a merecer algo da parte de Deus. 
Gregório só reteve a doutrina da predestinação sob forma modificada. Se ele fala da graça irresistível e da predestinação como um
conselho secreto de Deus, concernente ao número certo e definido de
eleitos, isso só se daria como algo alicerçado sobre a presciência de
Deus. Deus designaria um certo número definido para a salvação, pois
saberia que eles iriam aceitar o evangelho. Contudo, ninguém poderia
ter certeza de sua próprio eleição, ou a de qualquer outra pessoa. 
 

2. A CONTROVÉRSIA GOTTSCHALKIANA 

Ocasionalmente Agostinho aludira a uma dupla predestinação, e
Isidoro de Sevilha continuou escrevendo como se ela fosse dupla. Mas
muitos dos seguidores de Agostinho dos séculos VII, VIII e IX já
haviam perdido de vista esse duplo caráter da predestinação, interpretando-a conforme Gregório fizera. Surgiu então Gottschalk, que só
achava descanso e paz para a sua alma na doutrina agostiniana da
eleição, contendendo vigorosamente pelo dupla predestinação, ou
seja, tanto dos salvos quanto dos perdidos. Ele se mostrou cauteloso,
entretanto, em limitar a eficiência divina à porção remidora e à
produção da santidade, e em considerar o pecado meramente como
objeto de um decreto permissivo que, não obstante, tomou-o certo. Ele
rejeitava explicitamente a idéia de uma predestinação baseada sobre a
presciência, pois isso tomaria um decreto divino dependente dos atos
humanos. A presciência meramente acompanha a predestinação e
confirma a sua justiça.

Sofreu ele muita oposição sem base. Seus oponentes não o compreenderam, assacando contra ele a acusação comum de que seus ensinos
tomavam Deus autor do pecado. Sua doutrina foi condenada em
Maience, em 848, e no ano seguinte ele foi açoitado e sentenciado ao
aprisionamento perpétuo. Seguiu-se um debate, no qual vários teólogos influentes, como Prudêncio, Retramno, Remígio e outros, defenderam a doutrina da dupla predestinação como agostiniana, enquanto
que especialmente Rabano e Hincmar de Rheims a atacaram. Entretanto, no fim essa controvérsia mostrou ser pouco mais do que um debate
em tom o de palavras. Tanto os defensores como os atacantes eram
semi-pelagianos de coração. Expressavam a mesma idéia de ângulos
diferentes. Os primeiros aludiam, com Agostinho, a uma dupla
predestinação, porém baseavam a reprovação sobre a presciência,
enquanto que os últimos aplicavam o termo “predestinação” somente
à eleição para a vida, e igualmente alicerçavam a reprovação sobre a
presciência. Ambos subscreviam à idéia da graça sacramental, temendo que a teoria estrita da predestinação viesse a depreciar os sacramentos, furtando-lhes o valor espiritual e reduzindo-os a meras formalidades.
As decisões dos Concílios de Quierci e Valência concordaram
inteiramente com aqueles pontos de vista; no prim eiro foram
reproduzidas as posições dos atacantes, e no último as dos defensores.
A declaração do Concílio de V alência reza: “Confessam os a
predestinação dos eleitos para a vida, bem como a predestinação dos
ímpios para a morte; mas que, na eleição dos salvos, a misericórdia de
Deus antecede os bons méritos, ao passo que na condenação dos que
perecerão os maus méritos antecedem o justo juízo de Deus. Na
predestinação, sem embargo, Deus determinou somente aquelas coisas
que Ele mesmo faria, ou com base na misericórdia gratuita ou com base
cm juízo justo… M as que nos ímpios Ele teve presciência da iniqüidade
porque procede deles; e não a predestina, posto não proceder dEle”.
Citado por Seeberg, History ofDoctrines, II, pág. 33. Esses Concílios
ocorreram em 853 (Quierci) e 855 (Valência).

3. A CONTRIBUIÇÃO DE ANSELMO

Houve um grande pensador, durante a Idade M édia, que não só
reproduziu a antropologia agostiniana, como também fez contribuição
positiva à mesma, a saber, Anselmo de Canterbury. 

(a) Sua doutrina do pecado. Ele frisava a doutrina do pecado
original, mas destacava o fato que o termo “original” não se refere à
origem da raça humana, e sim ao indivíduo na atual condição das
coisas.
 Em sua opinião o pecado original poderia ser chamado peccatum
naturale (pecado natural), embora não pertencente à natureza humana
como tal, antes represente uma condição para a qual ela foi trazida
desde a criação. Por causa da Queda, ficou o homem culpado e poluído;
e tanto a culpa quanto a polução são agora transmitidas de pai para
filho. Todo pecado, quer o original ou o factual, constitui-se em culpa.
Visto que o pecado pressupõe o exercício do livre-arbítrio, ele
levanta a questão de como o pecado pode ser atribuído aos infantes, e
por qual motivo os infantes deveriam ser batizados para a remissão do
mesmo. Ele encontra a explicação disso no fato que a natureza humana
apostatou após a criação. À semelhança de Agostinho ele tinha cada
criança como uma porção individualizada daquela natureza humana
geral que Adão possuía, de tal modo que ela também pecara em Adão,
lornando-se assim culpada e poluída. Não tivesse Adão caído, a
natureza humana não teria apostatado, e uma natureza santa teria sido
transmitida de pai para filho. No atual estado de coisas, entretanto,
propaga-se uma natureza pecaminosa. O pecado original, pois, tem sua
origem em um pecado da natureza, ao passo que os pecados factuais
posteriores têm caráter inteiramente individual.
Anselmo levanta a questão se os pecados dos ancestrais imediatos
são imputados à posteridade do mesmo modo que o pecado daquele
primeiro progenitor. Sua resposta é negativa, porque tais pecados não
foram cometidos pela natureza comum em Adão. 
O pecado de Adão foi
singular; nunca houve segundo igual a ele, por ser transgressão de um
indivíduo que em si mesmo incluía a humanidade inteira. Sem dúvida
esse é um ponto débil no sistema de Anselmo, já que todos os pecados
que se seguiram são cometidos pela mesma natureza humana, embora
individualizada, e também porque não responde à indagação por que
somente o primeiro pecado de Adão foi imputado à sua posteridade, e
não também seus outros pecados. 
Ele também chama atenção para o
fato que, em Adão, a culpa da natureza, isto é, o pecado original,
repousa sobre a culpa do indivíduo, ao passo que, em sua posteridade,
a culpa do indivíduo jaz sobre a culpa da natureza. Na pessoa de Adão
foi testada a raça humana em sua inteireza. Nesse particular, Anselmo
chega perto da idéia posterior do pacto. 
(b) Sua doutrina da liberdade da vontade. Anselmo também
discutiu a idéia problemática da liberdade da vontade, fazendo algumas
sugestões valiosas. 
Ele assevera a definição popular de liberdade como
o poder de pecar ou de não pecar, ou seja a possibilitas utriusque partis,
como uma definição inadequada. Isso não funciona no caso dos santos
anjos. 
Possuem eles perfeita liberdade moral e, no entanto, não são
capazes de pecar. Ele afirmava que a vontade que, por si mesma e sem
compulsão externa, está firmemente inclinada para o direito a ponto de
não poder abandonar a vereda da retidão, é mais livre do que a vontade
tão debilmente inclinada para o direito que é capaz de afastar-se do
caminho da justiça. Todavia, se isso é assim realmente, poderíamos
perguntar se podemos tachar de ato livre a apostasia dos anjos e dos
nossos primeiros pais. 
A isso Anselmo responde que o ato de nossos
primeiros pais. 
A isso Anselmo responde que o ato de nossos primeiros
pais certamente foi uma ação espontânea, de pura vontade própria,
embora não um ato de liberdade genuína. Pecaram, não devido à sua
liberdade, e sim a despeito dela, em virtude da possibilitas peccandi
(possibilidade de pecar). 
O poder de agir diversamente do que fizeram,
nada adicionaria à liberdade deles, porquanto eram voluntariamente
santos sem isso. Anselmo distingue entre a verdadeira liberdade e a
própria faculdade voluntária. A primeira se perdera, mas não a última. 
A verdadeira finalidade e o destino da vontade não é escolher ou o bem
ou o mal, e sim é escolher o bem. 
A faculdade voluntária foi tencionada
pelo Criador para que quisesse o bem, e nada mais. Sua verdadeira
liberdade consiste de sua auto-determinação de seguir a santidade.
Isso significa a rejeição da idéia de que liberdade é capricho, ou de que a vontade foi criada com a liberdade de ser indiferente. Em virtude da
criação, a vontade foi confinada à escolha de um único objeto, a saber,
a santidade. No entanto a aceitação dessa finalidade precisa ser uma
auto-determinação, e não por compulsão externa. A capacidade de
escolher o erro, quando dada com o propósito de provação, diminui a
perfeição da liberdade real, porque a expõe aos azares de uma escolha
ilegítima. 

4. PECULIARIDADES DA ANTROPOLOGIA CATÓLICO –
ROMANA

A igreja católica romana abrigava claramente duas tendências, uma
semi-agostiniana e outra semi-pelagiana, das quais a última gradualmente foi assumindo a preponderância. Não podemos acompanhar
aqui todas as discussões dos escolásticos, pelo que simplesmente
afirmaremos os ensinamentos característicos que gradualmente foram
surgindo.

    Prevalecia gradualmente a idéia de que a retidão original não era um
dote natural, e sim sobrenatural, do homem. O homem, afirmavam,
naturalmente consiste de carne e espírito, e dessas propensões diversas
e contrárias surge um conflito (concupiscência), o qual geralmente
dificulta a ação reta. Para contrabalançar as desvantagens dessa original debilidade da natureza, Deus adicionou ao homem um dom notável,
a saber, a retidão original, que serviria de entrave que mantém a porção
inferior do homem na devida subordinação à porção superior, e esta
última a Deus. Essa retidão original seria um dom sobrenatural, um
donurn superadditum, algo acrescentado à natureza do homem, que
fora criado sem retidão positiva, mas também sem injustiça positiva.
Com a entrada do pecado no mundo o homem perdeu essa retidão
original. Isso quer dizer que a apostasia do homem não envolveu a
perda de qualquer dote natural do homem, mas apenas a perda de um
dom sobrenatural, estranha à natureza essencial do homem. Perdida a
retidão original, o homem retrocedeu à condição de um irrestrito
conflito entre a carne e o espírito. A supremacia do elemento superior
sobre o inferior, em sua natureza, foi fatalmente debilitada. O homem
foi reconduzido a uma condição de neutralidade, na qual não é
pecaminoso e nem santo, porém em face da constituição mesma de sua
natureza ficou sujeito ao conflito entre a carne e o espírito.
Em vista de que Adão, o cabeça da raça humana, foi constituído
representante de todos os seus descendentes, todos pecaram nele, tendo
c hegado ao mundo carregados com o pecado original. Apesar de que
os escolásticos muito diferem quanto à natureza do pecado original, a  opinião prevalecente entre eles é que não se trata de algo positivo; antes
seria a ausência de algo que deveria estar presente, particularmente a
privação da justiça original, a despeito do fato que alguns deles
adicionam um elemento positivo, a saber, o pendor para o mal. Alguns
deles entendem que a retidão original significa que a justiça original foi
superposta ao homem, além do que outros ainda acrescentam a isso a
justitia naturalis. Esse pecado é universal e voluntário, por ser derivado do nosso progenitor original. Não deveria ser identificado com a
concupiscência, com os maus desejos e com a sensualidade presentes
no homem, porquanto essas coisas não são pecaminosas, no mais
estrito significado do vocábulo.
Os católicos romanos repudiam a idéia da impotência espiritual do
homem e sua total dependência da graça de Deus para que experimente
renovação. Adotam a teoria do sinergismo na regeneração, o que quer
dizer que o homem coopera com Deus na renovação espiritual da alma.
O homem se prepara e dispõe para a graça da justificação, que
supostamente seria a retidão infundida no homem. Durante os dias da
Reforma, o monenergismo dos reformadores era contradito pelos
católicos romanos com maior veemência do que o faziam contra
qualquer outra doutrina. 

Perguntas para estudo posterior

Por que a Igreja hesitou em aceitar o agostinianismo estrito? Em que
direção a Igreja pendeu a princípio, mas que idéia prevaleceu por fim?
Em que os pontos de vista de Gregório o Grande eram diferentes dos
de Agostinho? Gottschalk afirmava que Deus predestinou os réprobos
para cometerem pecado? Quais interesses práticos estariam sendo
ameaçados por seu ensino? No que a concepção de Anselmo sobre o
pecado original se mostrava defeituosa? Ele ofereceu alguma explanação adequada para a transmissão do pecado? Em que diferia da de
Pelágio a sua concepção da liberdade da vontade? Quais diferentes
pontos de vista do pecado original se mostravam correntes entre os
escolásticos? Os católicos romanos acreditam que a queda do homem
afetou a sua natureza constitucional? De que modo definem eles o
pecado original? No que isso difere da concupiscência? Eles atribuem
liberdade da vontade mesmo após a Queda? Em que sentido?

 
conteúdo retirado do livro: A Historia das Doutrinas Cristas – Louis-Berkhof

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