ANTROPOLOGIA DO PERÍODO PATRÍSTICO

Louis-Berkhof

 

 1. IMPORTÂNCIA DOS PROBLEMAS ANTROPOLÓGICOS 

Enquanto as controvérsias cristológicas agitavam o Oriente, outros
problemas, como os do pecado e da graça, do livre-arbítrio e da divina
predestinação, estava vindo à tona no Ocidente. Sua importância
di ficilmente pode ser superestimada do ponto de vista do cristianismo
prático. Sua relação com a obra da redenção ainda é mais diretamente
evidente do que no caso das questões cristológicas. Nesse campo é que
se acham as principais linhas demarcatórias entre as grandes divisões
do cristianismo. Cunningham declara: “Nunca houve, de fato, muita
evidência de verdadeira religião pessoal sempre que a divindade do
Filho de Deus tem sido negada; mas com freqüência tem havido
profissão de sã doutrina sobre essa questão, de há muito mantida, onde
(cm havido pouca religião verdadeira. Por outro lado, não só nunca
houve muita religião genuína onde não tem havido profissão de
(louírina substancialmentehígida em relação aos pontos envolvidos na
controvérsia pelagiana, entretanto também — e esse é o ponto de
contraste — a decadência da religião autêntica sempre foi acompanhada, em grande medida, pelo erro doutrinário sobre esses temas; a ação
t* a reação de uma coisa sobre a outra é algo imediato e manifesto”.
Ilistorical Theology I, pág. 321.

2. ANTROPOLOGIA DOS PAIS GREGOS 

O interesse principal dos Pais gregos jazia no campo da teologia e
da cristologia, e mesmo quando abordavam questões antropológicas,
faziam-no superficialmente. No pensamento deles havia um certo
dualismo acerca do pecado e da graça, resultando em apresentações
bastante confusas, com ênfase preponderante sobre doutrinas que exibem manifesta afinidade com os ensinamentos posteriores de
Pelágio, e não com os de Agostinho. Pode-se dizer, até certo ponto, que
eles prepararam o caminho para o pelagianismo. Em nossa breve
discussão deve ser suficiente a mera indicação das principais idéias que
prevaleciam entre eles.
Seu ponto de vista do pecado foi, sobretudo no princípio, influenciado em grande parte por sua oposição ao gnosticismo, com ênfase
sobre a necessidade física do mal e sua negação da liberdade da
vontade. Frisavam o fato que a criação de Adão à imagem de Deus não
envolveu sua perfeição ética, e sim somente a perfeição moral de sua
natureza. Adão podia pecar, e pecou, e assim é que ficou sob o poder
de Satanás, da morte e da corrupção pecaminosa. Essa corrupção física
se propagou à raça humana, embora ela mesma não seja pecado e nem
tenha envolvido a humanidade na culpa. Não há pecado original no
sentido estrito do termo. Não negam a solidariedade da raça humana,
mas admitem seu liame físico com Adão. Essa ligação, entretanto, se
relaciona só com a natureza corporal e sensual, que se propaga de pai
para filho, todavia não com o lado superior e racional da natureza
humana, o qual, em cada caso, é uma direta criação de Deus. Não exerce
nenhum efeito imediato sobre a vontade, porém afeta a mesma apenas
de modo mediato, através do intelecto. O pecado sempre se origina no
livre-arbitrío do homem, sendo resultado da fraqueza e da ignorância.
Conseqüentemente, não se pode considerar culpados aos infantes,
porquanto herdaram somente a corrupção física.
Deve-se notar, contudo, que houve alguns desvios desse ponto de
vista geral. Orígenes, embora admitindo que certa polução hereditária
se apega a cada um desde o nascimento, pensava residir a explicação
disso na queda pré-natal ou pré-temporal da alma, e chegou bem perto
da doutrina do pecado original. E Gregório de Nissa chegou ainda mais
perto de ensinar essa doutrina. No entanto, até mesmo o grande
Atanásio e Crisóstomo evitavam-na escrupulosamente.
Naturalmente, a doutrina da graça divina que prevalecia nos ensinos
dos Pais gregos foi profundamente influenciada e determinada sobretudo por sua concepção do pecado. No todo, a maior ênfase recaía sobre
o livre-arbítrio do homem, e não sobre as operações da graça divina.
Não é graça de Deus, mas o libre-arbítrio humano que toma a iniciativa
na obra da regeneração. No entanto, apesar de começar a obra, ele não
pode completá-la sem a ajuda divina. O poder de Deus coopera com a
vontade humana, capacitando-a a abandonar o mal e a fazer aquilo que
é agradável aos olhos de Deus. Esses Pais nem sempre fizeram clara
distinção entre o bem que o homem natural é capaz de fazer e aquele
bem espiritual que requer a força capacitadora do Espírito Santo.

 3. SURGIMENTO GRADUALDE OUTRAPOSIÇÃO NO
OCIDENTE 

Essa antropologia grega também influenciou mais ou menos o
Ocidente nos séculos II e III d.C., mas nos séculos III e IV d.C, ia-se
manifestando gradualmente o germe da doutrina que se destinava a
t ornar-se prevalecente no Ocidente, sobretudo nas obras de Tertuliano,
Cipriano, Hilário e Ambrósio.
O traducionismo de Tertuliano substituiu o criacionismo que foi
postulado pela teologia grega, e isso mostrou ser o caminho para a idéia
do pecado inato, em distinção do mal inato. Sua famosa máxima era
Traduz animae, tradux peccati, isto é, a propagação da alma envolve
a propagação do pecado. Ele casava sua doutrina de traducionismo a
uma teoria de realismo, segundo a qual Deus teria sido criador da
natureza humana genérica, tanto corpo quanto alma, individualizandoa por meio da procriação. Nesse processo, a natureza não perde suas
qualidades distintivas, mas continua sendo inteligente, racional e
voluntária em todos os pontos e em cada uma de suas individualizações,
de tal modo que suas atividades não cessam de ser atividades racionais
c responsáveis. O pecado da natureza humana original continua sendo
pecado, em todas as existências individuais dessa natureza. Tertuliano
representa apenas o começo da antropologia latina, e algumas de suas
expressões lembram-nos ainda de alguns dos ensinos dos Pais gregos.
Ele alude à inocência dos infantes, porém provavelmente supõe tal
coisa somente no sentido relativo que estão livres de pecados vigentes;
e não nega inteiramente a liberdade da vontade. E embora ele reduzisse
a eficiência humana a um mínimo, algumas vezes ele usava linguagem
que soa como a teoria sinérgica da regeneração, ou seja, a teoria de que
Deus e o homem operam juntos na regeneração.
Nos escritos de Cipriano há a tendência crescente na direção da
doutrina da pecaminosidade original do homem, bem como da renovação monenergética da alma. Parece que ele defendia que a culpa do
pecado original não é tão grande quanto a de pecados fatuais. A
doutrina de uma natureza pecaminosa, em distinção a uma natureza
corrupta, ainda é mais claramente asseverada do que nos escritos de
Ambrósio e Hilário. Eles ensinam com clareza que todos os homens
pecaram em Adão, pelo que nascem em pecado. Ao mesmo tempo,
porém, não postulam a total corrupção da vontade humana, em consequência do que aderiam à teoria sinérgica da regeneração, embora
pareçam mais incertos e contraditórios nessa questão do que o foram alguns dos primeiros Pais. Considerando todos os pontos, encontramos neles gradual preparação para o ponto de vista de Agostinho sobre
o pecado e a graça.

Perguntas para estudo posterior

Quais foram os principais representantes da teologia grega no
princípio? Em que sua oposição ao gnosticismo influiu sobre sua
antropologia? O platonismo exerceu qualquer efeito sobre isso? Qual
era a concepção deles sobre a condição original do homem? A Queda
recebe a devida ênfase nos ensinamentos deles? Como você justifica a
concepção de pecado que tinham como corrupção, e não tanto como
culpa? Como concebiam eles a propagação do pecado? Quais foram os
principais representantes da teologia latina no princípio? Qual era a
diferença entre a antropologia deles e a do Oriente? De que maneira se
pode explicar essa diferença? Como diferem um do outro criacionismo
e traducionismo?

conteúdo retirado do livro: A Historia das Doutrinas Cristas – Louis-Berkhof

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