O CRISTÃO E O DIVÓRCIO

“Eu vos digo, porém, que qualquer que repudiar sua mulher, não sendo
por causa de prostituição, e casar com outra, comete adultério; e o que casar
com a repudiada também comete adultério” (Mt 19.9)

 

 

 O tema do divórcio é, sem dúvida alguma,
um dos mais polêmicos, na visão dos evangélicos em geral, diante da ética
cristã. De um lado, há os que não o aceitam em qualquer hipótese, entendendo a indissolubilidade do casamento de
modo radical. No outro lado, há os que o aceitam, sob determinadas
circunstâncias, buscando base para tal entendimento na Bíblia Sagrada, como
regra de fé e prática.  

 

1. O divórcio no Antigo Testamento

A palavra divórcio era kerithuth, no hebraico,  equivalente
ao vocábulo grego apoluo, com o
sentido de “Libertar; soltar; liberar; dissolver radicalmente; desamarrar;
desligar, como o caso de um soldado que dá baixa do Exército; desfazer um laço;
…libertar, como se liberta um cativo, isto é, soltar-lhe as cadeias, que o
prendem para que tenha liberdade de sair” (A Manual Greek-Lexicon of the
New Testament; The vocabulary of the Greek New Testament – citado por Duty, p.
37).

1.1. Motivos para o divórcio

1)  Motivo subjetivo.

No Pentateuco, encontramos as informações mais
claras sobre a questão do divórcio, no Antigo Testamento. No livro de
Deuteronômio, lemos que: “Quando um homem tomar uma mulher e se casar com ela, então, será que, se
não achar graça em seus olhos, por nela achar coisa feia, ele lhe fará escrito
de repúdio, e lho dará na sua mão, e a despedirá da sua casa” (Dt 24.1 –
grifo nosso). O texto nos demonstra que o homem tinha o direito de repudiar sua
mulher por motivos bem
subjetivos

1)  Casamento misto. 

Era motivo bem objetivo. O próprio Deus determinou o
divórcio ou o repúdio às esposas estranhas à linhagem de Israel, quando os
judeus voltaram do exílio babilônico.  No
livro de Esdras, encontramos dramático relatório sobre a situação espiritual e
social de Israel. Os príncipes chegaram-se ao Sacerdote Esdras, informando-lhe
que os sacerdotes, os levitas estavam seguindo “as abominações” dos habitantes
da terra de Canaã, inclusive casando com
mulheres estranhas, e buscando as filhas dos povos daquela terra para
seus filhos, dando, assim, um péssimo exemplo para o povo em geral.

O sacerdote, tomando conhecimento de tão grave

transgressão, rasgou seus vestidos, e prostrou-se atônito diante de Deus,
procurando uma direção sobre a atitude a tomar. Perplexo, decepcionado, e
confuso, Esdras o sacerdote clamou a Deus diante do problema da união mista (Ed
6.6-12).

2)  No caso de infidelidade?

Pessoas contrárias ao divórcio entendem que “coisa
feia” ou “coisa indecente”, no texto de Dt 24, seria a prática,
pela mulher, de fornicação, antes do casamento, ou o adultério. Mas esse
argumento não tem sustentação bíblica, visto que a prática de adultério, bem
como de fornicação, era punida com a pena de morte por apedrejamento (Leia-se
Lv 20.10; Dt 22. 20-22). Nesses casos, não haveria divórcio, mas sepultamento
da mulher infiel.

4) A carta de divórcio

 

Era um documento legal, fornecido à mulher repudiada, a
qual ficava livre para casar de novo. Chamava-se de “carta de liberdade” –
“documento de emancipação” – que lhe dava direito a novo casamento (Duty, p.
29,30).  Diz o AT: “ele lhe fará
escrito de repúdio, e lho dará na sua mão, e a despedirá da sua casa” (Dt
24.1b). A mulher repudiada, “por qualquer motivo”, por apresentar
“coisa feia”, ou “coisa indecente”, recebia, humilhada,
“o escrito de repúdio”, mas tinha o direito de “se casar com
outro homem” (Dt 24.2). “O marido obrigava-se a pagar uma espécie de
indenização, a kethubah, e isto
estava ligado ao dote recebido pela esposa…” (Rops, p. 93). Se o segundo
marido a aborrecesse, poderia lhe dar “escrito de repúdio” e ela
poderia casar novamente (Dt 24.3). O que ela não podia era voltar para o
primeiro marido, mesmo que o último morresse (Dt 24.4), pois estaria
“contaminada” e seria “abominação perante o Senhor”.

2. O divórcio no período interbíblico

Entre os judeus, havia duas escolas importantes, que
ditavam as normas de comportamento para a sociedade. Essas normas vigiam no
tempo de Jesus.

 

 

1) A escola de Shammai

Este rabino tinha uma interpretação radical de Dt 24.1.
Segundo seu entendimento, a carta de divórcio
só podia ser dada à mulher em caso de fornicação ou de infidelidade
conjugal. De certa forma, era uma evolução do pensamento judaico, pois uma leitura
cuidadosa de Dt 24.1 dá a entender que a mulher só podia ser despedida se o
homem achasse nela “coisa feia”, ou “coisa indecente”, sem que isso fosse a
prática de infidelidade ou prostituição, visto que às mulheres infiéis só
reatava a pena de morte (cf. Lv 20.10; Dt 22. 20-22). Mas a visão de Shammai
era bem aceita por grande parte dos intérpretes da lei. Veremos que Jesus
corroborou esse pensamento, quando doutrinou sobre o assunto.

2) A escola de Hillel

Este era um rabino de visão liberal, e favorecia a posição
do homem em relação à mulher. Para ele, o homem poderia deixar sua mulher,
divorciando-se dela, “por qualquer motivo”, por qualquer “coisa
feia”, ou “coisa indecente”. Tais coisas seriam as que já
enumeramos antes: andar de cabelos soltos, falar com homens que não fossem seus
parentes, maltratar os sogros, falar muito alto, etc. Assim, o homem podia
divorciar-se a seu bel-prazer.

3. O divórcio nos evangelhos

 A base do entendimento sobre o divórcio,
na ótica neotestamentária, está assentada no Antigo Testamento. E Jesus partiu
dela para estabelecer sua doutrina sobre o assunto. No Sermão do Monte, célebre
discurso de Jesus, ele pregou sobre as verdadeiras leis do seu Reino. A partir
de uma pergunta de um grupo de fariseus, o Mestre ministrou o mais profundo
ensino bíblico sobre o posicionamento cristão perante à dura realidade das
relações conjugais prejudicadas por motivos que contrariam a vontade de Deus.

1) A pergunta dos fariseus

Procurando encontrar algo para incriminar Jesus, os
fariseus indagaram-lhe: ” É lícito ao homem repudiar sua mulher por qualquer motivo? (Mt 19.3b). [grifo
nosso]. Foi a pergunta que deu origem à discussão sobre o divórcio no Novo
Testamento. Ao sublinhar “por qualquer motivo”, os fariseus estavam
imbuídos da idéia esposada pela escola do rabino Hillel, que defendia o direito
de o homem dar carta divórcio à mulher por qualquer “coisa feia”,
como já vimos.

2) A doutrina original

Jesus, respondendo aos interlocutores, relembrou
o “princípio” de todas as coisas, quando, no Éden, Deus fez o ser
humano “macho e fêmea”, e disse: “Portanto,
deixará o varão o seu pai e a sua mãe e apegar-se-á à sua mulher, e serão ambos
uma carne” (cf. 

Gn 2.24). e que,
nessa união (apego), não são dois, “mas uma só carne”, e concluiu: “Portanto, o que Deus ajuntou não o
separe o homem” (Mt 19.6).
Esta é a doutrina originária, que reflete o
plano de Deus para o casamento, considerando-o uma união indissolúvel, a não
ser por causa da morte. Reflete a vontade diretiva do criador do casamento.

Não satisfeitos, os fariseus insistiram: “Então,

porque mandou Moisés dar-lhe carta de divórcio e repudiá-la?” (Mt 19.7).
Note-se que a pergunta inicial não questionava o divórcio em si, mas se era
lícito “por qualquer motivo”. Naquele tempo, o divórcio era prática
muito comum, pois era mais aceita a doutrina do rabino Hillel. Veja-se o caso
da mulher samaritana, que já tivera cinco maridos, sendo, provavelmente,
divorciada cinco vezes (cf. Jo 4.18). E os fariseus queriam jogar Jesus contra
a opinião dos que valorizavam o repúdio “por qualquer motivo” (falar
demais, queimar o pão, ficar feia, gorda, barriguda, gritar com o marido,
etc.). 

3) A doutrina de Jesus 

Respondendo à pergunta insistente, Jesus explicou que Moisés
permitiu dar carta de repúdio às
mulheres, “por causa da dureza dos vossos corações”. A pergunta
estava respondida. Moisés formulou uma doutrina permissiva quanto ao divórcio,
visando proteger as mulheres do abandono pelos maridos de corações duros, o que
as exporia à prostituição e à miséria. Com a carta, elas podiam casar de novo.
Entretanto, Jesus quis externar sua doutrina, também de caráter permissivo, porém com uma única restrição, ou
exceção. Ao invés de satisfazer o desejo dos fariseus, que admitiam o divórcio
“por qualquer motivo”, o Mestre disse: “Eu vos digo, porém, que qualquer que repudiar sua mulher, não sendo por causa
de prostituição,
e casar com outra,
comete adultério; e o que casar com a repudiada também comete adultério”

(Mt 19.9). [Grifo nosso]. O verbo repudiar (do
gr. apolyo
), quer dizer “libertar”, “deixar ir”,
“dar carta livre”, usado com o sentido de divórcio, em Mateus 19.9,
Marcos 10.2 e Lucas 16.18″ (Da Silva, p. 32). 

4) Exceção para o divórcio, e novo casamento, segundo Jesus 

a)  Divórcio a pedido do homem

Jesus definiu que o homem só pode se divorciar de sua
mulher “e casar com outra” (grifo nosso), se houver
infidelidade por parte dela. Numa outra
versão bíblica se lê: “exceto por causa de infidelidade
conjugal” ou “relações sexuais ilícitas”. As expressões querem
dizer a mesma coisa. A palavra exceto, no grego, é parektos, indicando a exceção à regra. Jesus doutrinou, sem dúvida
alguma, que permite o divórcio, com a possibilidade de haver novo casamento,
mas somente no caso de prostituição, ou infidelidade conjugal.

A palavra grega para prostituição é  porneia (gr.), “que aparece 26 vezes no Novo

 

Testamento, significando ‘prostituição’,
‘incastidade’, ‘fornicação’, ‘adultério’, ‘imoralidade’, ‘qualquer tipo de relação
sexual ilícita” (da Silva, p. 33).
Há quem se fixe na primeira resposta de Jesus, dizendo: ” o que
Deus ajuntou não separe o homem”. Com isso, insistem em que Jesus não
aprova o divórcio. É verdade, Ele não aprova, mas permite, pois o adultério separa o que Deus ajuntou, rompendo o
vínculo matrimonial. 

b) O divórcio a pedido da mulher.

Em Mc 10.11,12,
lemos o seguinte: “E ele lhes disse: Qualquer
que deixar a sua mulher e casar com outra adultera contra ela. E, se a mulher
deixar a seu marido e casar com outro, adultera”
. Nesse texto,  vemos que Jesus foi além da legislação
judaica, demonstrando que a mulher também tem os mesmo direitos do homem,
podendo pedir divórcio, caso o marido seja infiel.  

 

No Novo Testamento, essa visão foi totalmente
modificada. S. Paulo ensina:

“Porque todos sois filhos de Deus pela fé
em Cristo Jesus;  porque todos quantos
fostes batizados em Cristo já vos revestistes de Cristo. Nisto não há judeu nem
grego; não há servo nem livre; não há
macho nem fêmea;
porque todos vós
sois um
em Cristo Jesus” (Gl 3.26-28 – grifo nosso). Esse texto demonstra a
igualdade das pessoas que já se revestiram de Cristo, independente de raça,
situação social, ou de sexo. 

 

Assim, se ao homem é dado o direito de separar-se da esposa,
quando essa comete infidelidade, e casar com outra, à mulher, da mesma forma, é
conferido o mesmo direito,“porque,

para com Deus, não há acepção de pessoas” (Rm 2.11). Se alguém deseja ficar
aquém , ou ir além desse entendimento, parece-nos uma fuga do que ensina a
Palavra de Deus, por preconceito, equívoco, ou algum motivo estranho. 

c)  O divórcio na visão paulina

O apóstolo S. Paulo enfrentou alguns dos maiores
questionamentos que perturbaram a igreja cristã nos seus primórdios. Um deles
sem sombra de dúvidas foi a questão do divórcio. E ele soube posicionar-se com
elevado discernimento espiritual, sob a direção divina. Interpretando a
doutrina de Cristo sobre o divórcio, o apóstolo dos gentios apresentou
sérias  argumentações doutrinárias a respeito
do assunto. Meditemos nelas.

 

Morte para a lei (Rm 7.1-4).

a)  Aos casais crentes (1 Co 7.10). 

 

“Todavia, aos
casados
, mando, não eu, mas o Senhor, que a mulher se não aparte do marido.
Se, porém, se apartar, que fique sem casar ou que se reconcilie com o marido; e
que o marido não deixe a mulher”. Esta passagem refere-se aos “casais
crentes”, os quais não devem divorciar-se. Essa é a “regra
geral”. Se não houver algum dos motivos permissivos (Mt 19.9 e 1 Co 7.15),
não há qualquer justificativa para o casal crente se divorciar. Sabemos que há
cristãos que são, na prática, “discípulos” de Hillel, que querem o divórcio
“por qualquer motivo”. Se há desentendimentos, incompatibilidade de
gênio, ou se a esposa ficou feia (ou o marido), o caminho não é o divórcio, mas
a reconciliação com o perdão sincero, ou o celibato, caso sejam esgotados todos
os recursos para a vida em comum. Não vemos, na Bíblia, qualquer razão que
justifique o divórcio para os casais cristãos, quando não há as exceções
previstas na Palavra de Deus.

b)  Aos casais mistos (1 co 7.12,13). 

“Mas, aos outros,
digo eu, não o Senhor: se algum irmão tem mulher descrente, e ela consente em
habitar com ele, não a deixe. E se alguma mulher tem marido descrente, e ele
consente em habitar com ela, não o deixe”. Valorizando a família, a
Palavra de Deus reconhece a união de um cônjuge, que aceita a Cristo, e a
esposa (ou o esposo) continua na incredulidade, ou de um fiel, cujo cônjuge se
desvia. Entretanto, no caso de o cônjuge descrente (ou desviado) quiser
abandonar o crente fiel, pedindo divórcio, não pode ficar “sujeito à
servidão”, ou seja, sob o jugo de um casamento insuportável. Há casos em
que o descrente é prostituído, com risco de levar doenças para a esposa; ou é
beberrão contumaz, ou que espanca a esposa, proibindo-a de ser crente, etc. O
crente não deve tomar a iniciativa do divórcio. Deve deixar que o descrente o
faça: ” Mas, se o descrente se
apartar, aparte-se; porque neste caso o irmão, ou irmã, não está sujeito à
servidão; mas Deus chamou-nos para a paz” (v. 15). 

Na Bíblia de Estudo Pentecostal,
encontramos uma nota sobre o tema, em que os estudiosos do assunto expressão a
interpretação permissiva de Jesus, corroborando nosso entendimento (Ver nota
19.9): “Sob a Nova Aliança, os
privilégios do crente não são menores. Embora o divórcio seja uma tragédia, a
infidelidade conjugal é um pecado tão cruel contra o cônjuge inocente, que este
tem o justo direito de pôr termo ao casamento mediante o divórcio. Neste caso, ele ou ela está livre para
casar-se de novo com um crente
(1 Co 7.27,28)”. [grifo nosso]. 

 

Escola de Teologia – ETAP

Professor: Pr. Elinaldo Renovato de Lima

 

 

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