1. IDÉIAS DE GREGÓRIO O GRANDE
diligente de Agostinho, Jerônimo e Ambrósio. Suas inclinações religiosas levaram-no a renunciar ao mundo, e após o falecimento de seu pai
ele devotou suas riquezas a boas obras, particularmente à ereção de
mosteiros, para a promoção de uma vida puramente contemplativa.
Tendo sido eleito papa por unanimidade, em 590, só aceitou a posição
com grande relutância. Embora não fosse pensador original, tomou-se
autor de grande reputação e muito fez por disseminar a sã doutrina.
Depois de Agostinho, foi a autoridade de maior influência na Igreja. De
fato, durante a Idade Média, Agostinho era entendido somente conforme interpretado por Gregório. Por essa razão, a história da doutrina na
Idade Média forçosamente começa com ele.
O agostinianismo de Gregório era um tanto atenuado. Ele explica a
entrada do pecado no mundo através da fraqueza humana. O primeiro
pecado de Adão foi um ato livre, no qual desistiu do seu amor a Deus
e tomou-se sujeito à cegueira e à morte espirituais. Através do pecado
do primeiro homem, todos os homens se tomaram pecadores e, como
(ais, sujeitos à condenação. Isso soa como Agostinho, mas Gregório
nunca levou essas idéias à sua conclusão lógica. Ele considerava o
pecado mais como uma fraqueza ou doença do que como culpa, e
ensinava que o homem não perdera a liberdade, porém somente a
bondade da vontade. Paralelamente a isso, todavia, ele frisava que sem
a graça não pode haver nem salvação e nem quaisquer méritos
luimanos. A obra da redenção tem início com a graça de Deus. A graça
preveniente faz os homens quererem o bem, e a graça subseqüente
capacitam-nos a pô-lo em prática. A transformação do homem começa
no batismo, o que cria fé e cancela a culpa dos pecados passados. A
vontade é renovada e o coração se replena do amor de Deus, e assim o
homem é capacitado a merecer algo da parte de Deus.
conselho secreto de Deus, concernente ao número certo e definido de
eleitos, isso só se daria como algo alicerçado sobre a presciência de
Deus. Deus designaria um certo número definido para a salvação, pois
saberia que eles iriam aceitar o evangelho. Contudo, ninguém poderia
ter certeza de sua próprio eleição, ou a de qualquer outra pessoa.
2. A CONTROVÉRSIA GOTTSCHALKIANA
Ocasionalmente Agostinho aludira a uma dupla predestinação, e
Isidoro de Sevilha continuou escrevendo como se ela fosse dupla. Mas
muitos dos seguidores de Agostinho dos séculos VII, VIII e IX já
haviam perdido de vista esse duplo caráter da predestinação, interpretando-a conforme Gregório fizera. Surgiu então Gottschalk, que só
achava descanso e paz para a sua alma na doutrina agostiniana da
eleição, contendendo vigorosamente pelo dupla predestinação, ou
seja, tanto dos salvos quanto dos perdidos. Ele se mostrou cauteloso,
entretanto, em limitar a eficiência divina à porção remidora e à
produção da santidade, e em considerar o pecado meramente como
objeto de um decreto permissivo que, não obstante, tomou-o certo. Ele
rejeitava explicitamente a idéia de uma predestinação baseada sobre a
presciência, pois isso tomaria um decreto divino dependente dos atos
humanos. A presciência meramente acompanha a predestinação e
confirma a sua justiça.
Sofreu ele muita oposição sem base. Seus oponentes não o compreenderam, assacando contra ele a acusação comum de que seus ensinos
tomavam Deus autor do pecado. Sua doutrina foi condenada em
Maience, em 848, e no ano seguinte ele foi açoitado e sentenciado ao
aprisionamento perpétuo. Seguiu-se um debate, no qual vários teólogos influentes, como Prudêncio, Retramno, Remígio e outros, defenderam a doutrina da dupla predestinação como agostiniana, enquanto
que especialmente Rabano e Hincmar de Rheims a atacaram. Entretanto, no fim essa controvérsia mostrou ser pouco mais do que um debate
em tom o de palavras. Tanto os defensores como os atacantes eram
semi-pelagianos de coração. Expressavam a mesma idéia de ângulos
diferentes. Os primeiros aludiam, com Agostinho, a uma dupla
predestinação, porém baseavam a reprovação sobre a presciência,
enquanto que os últimos aplicavam o termo “predestinação” somente
à eleição para a vida, e igualmente alicerçavam a reprovação sobre a
presciência. Ambos subscreviam à idéia da graça sacramental, temendo que a teoria estrita da predestinação viesse a depreciar os sacramentos, furtando-lhes o valor espiritual e reduzindo-os a meras formalidades.
As decisões dos Concílios de Quierci e Valência concordaram
inteiramente com aqueles pontos de vista; no prim eiro foram
reproduzidas as posições dos atacantes, e no último as dos defensores.
A declaração do Concílio de V alência reza: “Confessam os a
predestinação dos eleitos para a vida, bem como a predestinação dos
ímpios para a morte; mas que, na eleição dos salvos, a misericórdia de
Deus antecede os bons méritos, ao passo que na condenação dos que
perecerão os maus méritos antecedem o justo juízo de Deus. Na
predestinação, sem embargo, Deus determinou somente aquelas coisas
que Ele mesmo faria, ou com base na misericórdia gratuita ou com base
cm juízo justo… M as que nos ímpios Ele teve presciência da iniqüidade
porque procede deles; e não a predestina, posto não proceder dEle”.
Citado por Seeberg, History ofDoctrines, II, pág. 33. Esses Concílios
ocorreram em 853 (Quierci) e 855 (Valência).
3. A CONTRIBUIÇÃO DE ANSELMO
Houve um grande pensador, durante a Idade M édia, que não só
reproduziu a antropologia agostiniana, como também fez contribuição
positiva à mesma, a saber, Anselmo de Canterbury.
original, mas destacava o fato que o termo “original” não se refere à
origem da raça humana, e sim ao indivíduo na atual condição das
coisas.
naturale (pecado natural), embora não pertencente à natureza humana
como tal, antes represente uma condição para a qual ela foi trazida
desde a criação. Por causa da Queda, ficou o homem culpado e poluído;
e tanto a culpa quanto a polução são agora transmitidas de pai para
filho. Todo pecado, quer o original ou o factual, constitui-se em culpa.
Visto que o pecado pressupõe o exercício do livre-arbítrio, ele
levanta a questão de como o pecado pode ser atribuído aos infantes, e
por qual motivo os infantes deveriam ser batizados para a remissão do
mesmo. Ele encontra a explicação disso no fato que a natureza humana
apostatou após a criação. À semelhança de Agostinho ele tinha cada
criança como uma porção individualizada daquela natureza humana
geral que Adão possuía, de tal modo que ela também pecara em Adão,
lornando-se assim culpada e poluída. Não tivesse Adão caído, a
natureza humana não teria apostatado, e uma natureza santa teria sido
transmitida de pai para filho. No atual estado de coisas, entretanto,
propaga-se uma natureza pecaminosa. O pecado original, pois, tem sua
origem em um pecado da natureza, ao passo que os pecados factuais
posteriores têm caráter inteiramente individual.
Anselmo levanta a questão se os pecados dos ancestrais imediatos
são imputados à posteridade do mesmo modo que o pecado daquele
primeiro progenitor. Sua resposta é negativa, porque tais pecados não
foram cometidos pela natureza comum em Adão.
singular; nunca houve segundo igual a ele, por ser transgressão de um
indivíduo que em si mesmo incluía a humanidade inteira. Sem dúvida
esse é um ponto débil no sistema de Anselmo, já que todos os pecados
que se seguiram são cometidos pela mesma natureza humana, embora
individualizada, e também porque não responde à indagação por que
somente o primeiro pecado de Adão foi imputado à sua posteridade, e
não também seus outros pecados.
fato que, em Adão, a culpa da natureza, isto é, o pecado original,
repousa sobre a culpa do indivíduo, ao passo que, em sua posteridade,
a culpa do indivíduo jaz sobre a culpa da natureza. Na pessoa de Adão
foi testada a raça humana em sua inteireza. Nesse particular, Anselmo
chega perto da idéia posterior do pacto.
discutiu a idéia problemática da liberdade da vontade, fazendo algumas
sugestões valiosas.
o poder de pecar ou de não pecar, ou seja a possibilitas utriusque partis,
como uma definição inadequada. Isso não funciona no caso dos santos
anjos.
capazes de pecar. Ele afirmava que a vontade que, por si mesma e sem
compulsão externa, está firmemente inclinada para o direito a ponto de
não poder abandonar a vereda da retidão, é mais livre do que a vontade
tão debilmente inclinada para o direito que é capaz de afastar-se do
caminho da justiça. Todavia, se isso é assim realmente, poderíamos
perguntar se podemos tachar de ato livre a apostasia dos anjos e dos
nossos primeiros pais.
primeiros pais.
pais certamente foi uma ação espontânea, de pura vontade própria,
embora não um ato de liberdade genuína. Pecaram, não devido à sua
liberdade, e sim a despeito dela, em virtude da possibilitas peccandi
(possibilidade de pecar).
nada adicionaria à liberdade deles, porquanto eram voluntariamente
santos sem isso. Anselmo distingue entre a verdadeira liberdade e a
própria faculdade voluntária. A primeira se perdera, mas não a última.
ou o mal, e sim é escolher o bem.
pelo Criador para que quisesse o bem, e nada mais. Sua verdadeira
liberdade consiste de sua auto-determinação de seguir a santidade.
Isso significa a rejeição da idéia de que liberdade é capricho, ou de que a vontade foi criada com a liberdade de ser indiferente. Em virtude da
criação, a vontade foi confinada à escolha de um único objeto, a saber,
a santidade. No entanto a aceitação dessa finalidade precisa ser uma
auto-determinação, e não por compulsão externa. A capacidade de
escolher o erro, quando dada com o propósito de provação, diminui a
perfeição da liberdade real, porque a expõe aos azares de uma escolha
ilegítima.
4. PECULIARIDADES DA ANTROPOLOGIA CATÓLICO –
ROMANA
A igreja católica romana abrigava claramente duas tendências, uma
semi-agostiniana e outra semi-pelagiana, das quais a última gradualmente foi assumindo a preponderância. Não podemos acompanhar
aqui todas as discussões dos escolásticos, pelo que simplesmente
afirmaremos os ensinamentos característicos que gradualmente foram
surgindo.
dote natural, e sim sobrenatural, do homem. O homem, afirmavam,
naturalmente consiste de carne e espírito, e dessas propensões diversas
e contrárias surge um conflito (concupiscência), o qual geralmente
dificulta a ação reta. Para contrabalançar as desvantagens dessa original debilidade da natureza, Deus adicionou ao homem um dom notável,
a saber, a retidão original, que serviria de entrave que mantém a porção
inferior do homem na devida subordinação à porção superior, e esta
última a Deus. Essa retidão original seria um dom sobrenatural, um
donurn superadditum, algo acrescentado à natureza do homem, que
fora criado sem retidão positiva, mas também sem injustiça positiva.
Com a entrada do pecado no mundo o homem perdeu essa retidão
original. Isso quer dizer que a apostasia do homem não envolveu a
perda de qualquer dote natural do homem, mas apenas a perda de um
dom sobrenatural, estranha à natureza essencial do homem. Perdida a
retidão original, o homem retrocedeu à condição de um irrestrito
conflito entre a carne e o espírito. A supremacia do elemento superior
sobre o inferior, em sua natureza, foi fatalmente debilitada. O homem
foi reconduzido a uma condição de neutralidade, na qual não é
pecaminoso e nem santo, porém em face da constituição mesma de sua
natureza ficou sujeito ao conflito entre a carne e o espírito.
Em vista de que Adão, o cabeça da raça humana, foi constituído
representante de todos os seus descendentes, todos pecaram nele, tendo
c hegado ao mundo carregados com o pecado original. Apesar de que
os escolásticos muito diferem quanto à natureza do pecado original, a opinião prevalecente entre eles é que não se trata de algo positivo; antes
seria a ausência de algo que deveria estar presente, particularmente a
privação da justiça original, a despeito do fato que alguns deles
adicionam um elemento positivo, a saber, o pendor para o mal. Alguns
deles entendem que a retidão original significa que a justiça original foi
superposta ao homem, além do que outros ainda acrescentam a isso a
justitia naturalis. Esse pecado é universal e voluntário, por ser derivado do nosso progenitor original. Não deveria ser identificado com a
concupiscência, com os maus desejos e com a sensualidade presentes
no homem, porquanto essas coisas não são pecaminosas, no mais
estrito significado do vocábulo.
Os católicos romanos repudiam a idéia da impotência espiritual do
homem e sua total dependência da graça de Deus para que experimente
renovação. Adotam a teoria do sinergismo na regeneração, o que quer
dizer que o homem coopera com Deus na renovação espiritual da alma.
O homem se prepara e dispõe para a graça da justificação, que
supostamente seria a retidão infundida no homem. Durante os dias da
Reforma, o monenergismo dos reformadores era contradito pelos
católicos romanos com maior veemência do que o faziam contra
qualquer outra doutrina.
Perguntas para estudo posterior
Por que a Igreja hesitou em aceitar o agostinianismo estrito? Em que
direção a Igreja pendeu a princípio, mas que idéia prevaleceu por fim?
Em que os pontos de vista de Gregório o Grande eram diferentes dos
de Agostinho? Gottschalk afirmava que Deus predestinou os réprobos
para cometerem pecado? Quais interesses práticos estariam sendo
ameaçados por seu ensino? No que a concepção de Anselmo sobre o
pecado original se mostrava defeituosa? Ele ofereceu alguma explanação adequada para a transmissão do pecado? Em que diferia da de
Pelágio a sua concepção da liberdade da vontade? Quais diferentes
pontos de vista do pecado original se mostravam correntes entre os
escolásticos? Os católicos romanos acreditam que a queda do homem
afetou a sua natureza constitucional? De que modo definem eles o
pecado original? No que isso difere da concupiscência? Eles atribuem
liberdade da vontade mesmo após a Queda? Em que sentido?