Este capítulo continua a discussão de quanto é
certo tirar uma vida humana, se é que alguma vez isso é certo. Anteriormente
(no capítulo oito), foi argumentado que é certo tirar outra vida humana numa
guerra justificável. O capítulo doze discutiu quando é certo tirar uma vida
humana em potencial (como no aborto terapêutico). No presente capítulo voltamos
à pergunta de quando, e se, excluindo a guerra, é justificável tirar uma vida
humana. Por exemplo, as eutanásias são moralmente certas? A pena capital é
justificável em qualquer hipótese? O suicídio pode ser praticado com amor
sacrificial?
I. UMA ÉTICA CRISTA DA EUTANÁSIA
O que o cristão deve fazer a um homem preso, sem
esperança, num avião em chamas que implora para ser fuzilado? A maioria das
pessoas humanitárias mataria a tiros um cavalo preso num celeiro em chamas. Por
que um homem não pode ser tratado de modo tão humanitário quanto um animal? Ou,
quando um nené monstruosamente deformado nasce, e repentinamente para de
respirar, o médico está moralmente obrigado a ressuscitá-lo? Não seria mais
misericordioso deixá-lo morrer? Outro caso: digamos que um homem com uma doença
incurável está sendo mantido vivo somente com uma máquina. Se a tomada for
desligada, morrerá; se viver, será apenas artificialmente num tipo de
existência “vegetativa.” Qual é a obrigação moral do médico? Estas
situações e muitas outras como elas focalizam o problema ético de tirar a vida.
Quando, e se, tirar uma vida é moralmente justificável?
A. Nem Sempre Tirar Uma Vida É Assassinato
Antes desses casos serem examinados em particular,
será bom estabelecer um princípio geral que será a base da nossa conclusão. É
este: nem sempre tirar uma vida é assassinato. O mandamento bíblico significa
(conforme o texto da Nova Bíblia Inglesa): “Não cometerás
assassinato” (Êx 20:13). Há vários casos na Escritura em que tirar vidas
não é considerado moralmente errado. Por exemplo, tirar vidas numa guerra justa
contra um agressor mau (Gn 14:14-15). Além disto, havia o homicídio acidental
do seu próximo (Dt 19:4, 5) pelo qual o homem não era tido por culpado.
Finalmente, havia a pena capital instituída por Deus através de Noé (Gn 9:6) e
repetida por Moisés (Dt 19:21).
A partir destas ilustrações podemos deduzir duas
diferenças entre o assassinato e tirar justificavelmente uma vida.
Primeiramente, deve ser tirada intencionalmente. Se, pois, por acidente, um
homem matasse um vizinho a quem não odiava, não seria tido por culpado pela
lei. Em segundo lugar, nem sequer todos os casos de tirar uma vida
intencionalmente são assassinatos, a não ser que o ato fosse praticado sem
justa causa. Tirar as vidas de nenês inocentes não é uma justa causa (cf. Êx
l:16ss.), nem matar o irmão com ira (Gn 4:8,10). No entanto, matar um homem em
auto-defesa, ou na defesa da pátria, pode ser uma justa causa. Noutras
palavras, a proibição contra tirar as vidas de pessoas inocentes não exclui a justiça
de tirar a vida de um assassino culpado. Nem a proibição de matar seu vizinho
pacífico proíbe necessariamente atirar no seu vizinho que está em pé de guerra.
Há ocasiões em que tirar a vida doutro ser humano é justificado a fim de
proteger os inocentes. É tanto anti-bíblico quanto irrealista categorizar todo
ato de tirar uma vida como sendo moralmente errado. Pelo contrário, as vezes é
moralmente necessário. O tiranocídio, ou o assassinato de um ditador que tomou
sobre si o papel de Deus, pode ser um ato misericordioso em prol de massas de
homens oprimidos.1 Na realidade, poderia ser melhor do que uma
guerra contra aquele ditador em que mais vidas seriam perdidas.
B. Morrer Misericordiosamente Não É o Mesmo que
Matar Misericordiosamente
Outra distinção que deve ser feita é entre tirar uma vida e deixar a pessoa morrer. O primeiro ato pode ser errado, ao passo
que o último, na mesma situação, não precisa ser errado. Por exemplo, retirar o
medicamento de um paciente terminal e deixá-lo morrer naturalmente não precisa
ser um mal moral. Nalguns casos — quando o indivíduo e/ou os entes queridos
consentem — esta pode ser a coisa mais misericordiosa a se fazer. Realmente, se
uma doença é incurável e o indivíduo estiver sendo mantido vivo somente por uma
máquina, neste caso desligar a tomada pode ser um ato de misericórdia.
Isto não quer dizer que um médico deva dar remédios
ou fazer uma operação para apressar a morte — isto poderia, muito
provavelmente, ser assassinato. Mas esta posição realmente subentende que permitir misericordiosamente a morte do
sofredor é moralmente certo, ao passo que precipitar
sua morte não o é. Os remédios devem ser dados para aliviar o sofrimento
mas não para apressar a morte. Se, porém, a falta de remédios ou da máquina
pode diminuir o sofrimento ao permitir que a morte ocorra mais cedo, então por
que se deve ficar moralmente obrigado a perpetuar o sofrimento do paciente por
meios artificiais? Em síntese, matar envolve tirar a vida de outra pessoa, ao passo que a morte natural não o
envolve; é meramente deixar a pessoa
morrer. O homem é responsável por aquele ato, mas Deus é responsável por este.
Mas não há uma responsabilidade moral de preservar
uma vida se houver qualquer possibilidade, por quaisquer meios que forem (naturais
ou artificiais)? Conforme foi argumentado no caso de mentir a alguém que quer
assassinar, é errado não evitar um assassinato. Por que, pois, a pessoa não
deve impedir uma morte, se assim puder, por meio de remédios ou de uma máquina?
Como pode ser moralmente certo permitir que alguém morra quando tal coisa
poderia ter sido evitada, se não é considerado moralmente certo permitir que
alguém seja assassinado sem impedir o ato? A resposta é que os casos são muito
diferentes. De fato, a despeito da sua semelhança aparente, os dois casos são
quase opostos entre si. Impedir um assassinato é impedir o sofrimento de uma
vítima inocente. Mas impedir a morte de quem já está sofrendo é, realmente,
perpetuar o sofrimento. Além disto, permitir um assassinato é impedir a
continuação de quem tem o desejo e a possibilidade de viver uma vida humana
relevante. O caso não é assim para alguns sofredores cuja humanidade foi
diminuída para uma situação terminal ou quase “vegetal.”
C. A Obrigação É Perpetuar Vida que é Humana
A objeção de que milagres acontecem até mesmo em
supostos “casos incuráveis”, às vezes é levantada contra a permissão
para as eutanásias. Por que não conservar a pessoa viva e orar por um milagre?
Ou, talvez uma cura seja descoberta pelos cientistas se o indivíduo puder ser
conservado com vida por tempo suficiente. Na tentativa de responder a esta
pergunta, é necessário indicar que a pessoa deve ser conservada com vida
enquanto houver qualquer razão para se ter esperança (médica ou sobrenatural),
de que possa sarar ao ponto de ter uma vida humana relevante. Quando, no
entanto, amplas oportunidades tenham sido dadas tanto a Deus quanto à ciência
médica para curarem a enfermidade, mas parece certo, além de qualquer dúvida
razoável, que este paciente terá uma existência pouco melhor do que a de um
“vegetal,” pode-se concluir que Deus quer que tenha uma morte
natural. O princípio moral básico por detrás desta conclusão é que a pessoa não
deve perpetuar uma desumanidade enquanto aguarda futilmente um milagre. Esperar
uma cura sem qualquer certeza de que ela virá, enquanto se adia um ato de
misericórdia, não parece ser moralmente justificável. Esperar sem uma
expectativa razoável da graça não é uma base justificável para recusar-se a
deixar a misericórdia fazer a sua obra.
Há outro princípio moral global operando aqui. A
obrigação dos seres humanos no sentido de perpetuarem a vida não significa que
se deve ser obrigado a perpetuá-la se já não é uma vida humana em qualquer sentido relevante da palavra. Aliás, é moralmente
errado perpetuar uma desumanidade. Se um nenê monstruosamente deformado morre
naturalmente, deve ser considerado um ato de misericórdia divina. O médico não
deve sentir-se moralmente obrigado a reavivar um monstro ou um
“vegetal” humano. Assim como o mandamento moral é não tirar uma vida humana, assim também o dever da pessoa é
apenas perpetuar uma vida humana. Talvez
a esta altura o juramento hipocrático precise de reinterpretação. A profissão
médica não deve ser obrigada pelo dever a perpetuar toda vida, mas, sim,
somente uma vida verdadeiramente humana. Noutras
palavras, não é mais maligno desligar a tomada de uma máquina que está
sustentando artificialmente a vida que é sub-humana, ou pós-humana, e que não
tem possibilidade alguma de ser verdadeiramente humana, do que é abortar um
pré-humano que não se tomará humano. O dever moral é duplo: perpetuar o humano
e proibir o desumano.
D. A Eutanásia É Justificável
Em Qualquer Caso?
Até agora tem sido argumentado que permitir a morte misericordiosa é justificável. Mas
o que se diz acerca do matar por
misericórdia (a eutanásia)? Há ocasiões em que é correto tirar artificialmente
uma vida humana que não está morrendo naturalmente? Tirar a vida de um pré-humano (i.e., humano em potencial) é
justificável se se pode salvar um ser humano, e.g., o aborto para salvar uma
mãe.2 Além disto, deixar a vida de um sub-humano esgotar-se (sem, porém, tirar aquela vida) pode ser
justificado como um ato de misericórdia (como na morte misericordiosa — também
chamada eutanásia). Mas pode o ato de tirar a própria vida doutro ser humano ser justificado como um ato
de misericórdia? Não é difícil ver que (1) tirar uma vida é uma questão muito
mais séria do que deixar uma pessoa morrer naturalmente, e que (2) tirar uma
vida pré-humana ou sub-humana (ou pós-humana) é menos sério do que tirar uma
vida plenamente humana. É uma coisa muito séria tirar uma vida plenamente
humana. Não é, no entanto, meramente uma questão de seriedade mas, sim, da
justificação de tirar uma vida.
Quando o matar por misericórdia é
justificado, se é que é justificado
nalgum tempo? Para quem seria misericordioso?
1.Matar como
um Ato de Misericórdia aos Outros —
É sempre errado matar outro ser humano como tal. Há, porém, circunstâncias sobrepujantes que podem isentar
a pessoa deste dever. Há ocasiões em que é um ato de misericórdia a muitas
pessoas sacrificar uma só. Quantos pais ficariam de lado e deixariam um
assassino estrangular seus filhos sem resistir se pudessem fazê-lo? Numa
sociedade que está preocupada com a misericórdia para o assassino culpado,
ficamos perguntando o que aconteceu à misericórdia para a multidão inocente. É
um conceito distorcido da misericórdia preocupar-se mais com a proteção da vida
de quem não teve consideração pelas vidas dos outros, do que com a proteção das
massas que têm consideração apropriada com a vida alheia. Em nome da
misericórdia para as massas, decerto há justificativa para matar um franco
atirador que está fuzilando cidadãos inocentes.
Uma guerra justa é a eutanásia numa escala maior.
Pois o que torna a guerra justa é que é uma proteção dos inocentes contra a
agressão sangrenta dos culpados.3 É uma tentativa de preservar as
muitas vidas virtuosas da destruição mediante ordens de uns poucos homens maus.
2.Matar como
um Ato de Misericórdia para o Indivíduo — O que se diz do homem desesperançosamente preso num avião em
chamas? Ou dos pacientes que implorar que o médico lhes dê o golpe de
misericórdia? É correto, em qualquer ocasião, ceder aos desejos dos sofredores
no sentido de serem apagadas com seu sofrimento? Talvez uma resposta
“não” pareça demasiadamente categórica, mas este é o tipo de resposta indicado pela Escritura. Naturalmente, a
pessoa é moralmente obrigada a fazer tudo quanto é possível para aliviar o sofrimento,
sem tirar uma vida, no que diz respeito a uma vida humana individual. Mesmo
assim, nunca é um ato de misericórdia ao indivíduo como tal tirar a sua vida
quando é verdadeiramente humana. A vida humana tem valor intrínseco e não deve
ser tirada por outro ser humano mesmo que a vítima o peça. Somente Deus detém o
direito de dar e de tirar a vida. Ele é o Único que é soberano sobre toda a
existência. Tirar a vida doutro ser humano é ser um cúmplice ao pedido do outro
homem. É ser cúmplice no crime de ajudar alguém no seu próprio suicídio.4
Onde houver vida humana, ali há esperança para aquela vida. É uma questão ética
muito mais séria tirar uma vida humana (como no matar por misericórdia) do que
deixar partir uma vida sub—humana (como na morte misericordiosa justificável).
Mas é certo olhar um homem sofrer, sem procurar
aliviar sua agonia? Não, claro que não. Mas há muitos meios, excluindo a morte,
para aliviar o sofrimento. A Bíblia recomenda drogas para este propósito.
“Dai bebida forte aos que perecem e vinho aos amargurados de
espírito” (Pv 31:6). Pode-se atirar um tranquilizante, mas não uma bala de
fuzil, num homem preso num avião em chamas. Mesmo no caso de drogas não serem
disponíveis, deve-se usar todos os métodos, menos tirar a vida, para aliviar o
sofrimento. O corpo tem um limiar natural de dor. Os homens caem na
inconsciência antes de sofrerem indevidamente. No caso de incêndio, os homens
usualmente morrem pela fumaça antes das chamas consumi-los. Tomá-lo
inconsciente com um golpe ou precipitar a inconsciência para aliviar seu
sofrimento seria justificável, mas tirar sua vida, simplesmente porque está
sofrendo, e/ou simplesmente porque pede, não o é.
Não há qualquer comparação entre tirar uma vida a
pedido e o aborto a pedido. No, aborto, pois, somente há uma vida humana em
potencial, ao passo que o matar por misericórdia envolve uma vida plenamente
humana. Somente se outras vidas humanas puderem ser salvas por este meio é que
uma vida humana deve ser tirada. Nem sequer é correto iniciar a morte simplesmente porque a pessoa a prevê. Suicidar-se, ou ajudar alguém a fazê-lo não são justificados
simplesmente porque a pessoa deseja a morte. O desejo do cristão pela morte
(cf. Fp 1:23) pode levá-lo a enfrentar a morte sem temor, mas nunca deve
levá-lo a, descuidadosa, ou egoisticamente, tirar sua própria vida. Nem deve
levá-lo a pedir que outro o ajude nisto. O cristão deve dar as boas-vindas à
morte da mão de Deus, mas não deve forçar a mão que a traz.
II. UMA ÉTICA DO SUICÍDIO
Segundo alguns filósofos existencialistas
contemporâneos, o suicídio é o maior problema filosófico. A vida é absurda, uma
bolha vazia no mar do nada, e é uma questão séria quanto à sua continuação ou
não. Cebes perguntou a Sócrates por que, se a morte era tão bem-aventurada, o
homem não poderia ser seu benfeitor.6 O materialista romano,
Lucrécio, argumentava que a morte era nada, e, seguindo ele, alguns concluíram
que o suicídio é uma opção viável para a levar a efeito a felicidade desta
condição de nada.7
Outros filósofos notáveis, tais como Schopenhauer
soaram notas pessimistas, que mais do que flertam com o suicídio. E a julgar
pelo número crescente de suicídios e tentativas de suicídios pelos homens
contemporâneos, o suicídio é uma opção viva para um número considerável de
pessoas.
Naturalmente, a questão ética não é aquilo que os
homens estão fazendo, mas, sim, o que
devem estar fazendo. Daí, a pergunta
aqui não é porque os homens se
suicidam, mas se devem fazê-lo, e quando.
A. O Suicídio para Si Mesmo
Há duas razões dominantes para o suicídio, ou tirar
a própria vida: pode ser feito para si mesmo, ou pode ser feito em prol dos
outros. O primeiro será chamado suicídio egoísta. Em qualquer ocasião, é
moralmente certo tirar a própria vida nos seus próprios interesses? Ou, ainda
mais basicamente, tirar a própria vida é, em qualquer tempo, realmente do
interesse da pessoa?
1. O Suicídio para Si Mesmo Não Pode Ser
Justificado Filosoficamente
— A
despeito da tentativa fútil dos estóicos8 de justificar o suicídio,
e a despeito da propensidade pessimista de Schopenhauer a ele, faltam ao
suicídio, sadios fundamentos filosóficos. Talvez a melhor evidência para esta
conclusão venha dos filósofos existencialistas contemporâneos que consideram
que a questão do suicídio é a mais básica — e cuja filosofia lhes dá mais razão
para cometê-lo. Entre aqueles existencialistas ateus há uma forte rejeição do
suicídio. O suicídio, diz Sartre, é errado porque é um ato de liberdade que
destrói todos os atos futuros de liberdade. É uma afirmação do ser mediante a
qual a pessoa finalmente nega seu ser. Ou, nas palavras corriqueiras, o
suicídio é um ato do vivente que destrói a sua vida.
Definir o suicídio desta maneira ressalta
precisamente quão irracional o ato realmente é. É um ato arrazoado que
destruiria o raciocínio da pessoa. Como tal, o suicídio é uma ação absurda do
raciocínio, porque é a “razão” que se destrói a si mesma ao afirmar a
si mesma. Na realidade, não há nenhuma razão verdadeira para o suicídio.
É um ato anti-racional ao qual falta
uma verdadeira base lógica .
2. O Suicídio para Si Mesmo
Não Pode Ser Justificado Eticamente — A imoralidade do suicídio pode ser vista pela análise do seu
alegado motivo. Segundo aqueles que têm sido tentados pelo suicídio, e/ou os que
o tentaram, o suicídio tem para eles mesmos, parecido ser a melhor saída da sua
situação. Quão paradoxal, porém, é que alguém conclua para si que a melhor
coisa que pode fazer para si mesmo é destruir a si mesmo. Como pode a melhor
coisa para si mesmo ser o ato final contra si mesmo? Decerto é um uso
perverso do raciocínio que destruiria o raciocínio. Pode alguém, em qualquer
circunstância, estar agindo nos seus próprios interesses, quando seu plano é
destruir a si mesmo? O suicídio não é o interesse-próprio. Não pode ser! É uma
falta de interesse apropriado em si mesmo. A única maneira de alguém demonstrar
interesse em si mesmo é preservar a si mesmo. O suicídio é exatamente o oposto.
É realmente o ódio a si mesmo. E o ódio-próprio é irracional, absurdo. É, pois,
uma afirmação do próprioeu numa tentativa de renegar-se; é a escolha que
elimina todas as escolhas.
Com base nesta análise da irracionalidade do
suicídio, pode ser deduzido que ninguém nunca determina realmente o suicídio, embora alguns o desejem. Ou seja: quando um homem se
suicida, fá-lo contra sua vontade básica para viver. O suicídio é baseado no desejo do homem de ser aliviado do tipo
(miserável) de existência que tem, a despeito de fato de que tenha vontade da existência propriamente
dita. Conforme disse Agostinho, o suicídio é um fracasso da coragem. É
contrário ao ímpeto básico para a
existência; o suicídio é um desejo da não-existência. É o “escapismo”
existencial. Expressado de modo breve, o suicídio não é um problema filosófico
de modo algum; é um problema moral e/ou psicológico. Ou seja: os homens não
tentam o suicídio porque é a coisa mais razoável para fazer, mas sim, porque é
a saída “fácil” do seu problema. E quando alguém pensa que a saída
mais fácil da sua situação é atacar-se a si mesmo fatalmente, ao invés de
atacar o problema, neste caso tem um problema moral, senão um problema
psicológico.
Em resumo: não há maneira de suicidar-se para si mesmo, visto que o suicídio é o
ato mais básico contra si mesmo, que
pode ser cometido. Logo, o suicídio pelo alegado motivo moral de
interesse-próprio é excluído. O suicídio egoísta, como outras formas do
egoísmo, não visa realmente aos melhores interesses da pessoa. O verdadeiro
amorpróprio nunca desejará eliminar o próprio-eu que ama.
Mesmo assim, alguém talvez argumente que o suicídio,
como a eutanásia, possa ser justificado se a pessoa chegou a uma etapa
sub-humana ou “vegetativa” da existência. Por que não atirar em si
mesmo para evitar a continuação da sua própria desumanidade? Se é moralmente
certo ser o benfeitor da misericórdia para outro “vegetal” humano,
então por que não para si mesmo? A razão é bem simples: ninguém capaz de fazer
um raciocínio que o leve à conclusão de que deve terminar sua vida, perdeu a
sua humanidade. Pode ter perdido sua saúde mental (ou parte dela), mas ainda é
humano. E se ainda é suficientemente humano para raciocinar (embora
erroneamente) que a melhor coisa que pode fazer em prol da sua vida é
terminá-la, logo, ainda não é sub-humano. Segue-se daí que, porque, não é
sub-humano, não há justificativa para praticar a eutanásia em si mesmo, porque
a eutanásia é justificada somente quando mais vidas humanas podem ser salvas
por ela. A eutanásia de si mesmo é uma contradição em termos, porque o ato
final contra si mesmo não pode, ao mesmo tempo, ser um ato em prol de si mesmo.
No que diz respeito às Escrituras, o suicídio se
classifica na proibição do assassinato. É pelo menos tão errado tirar
ilicitamente sua própria vida quanto o de tirar a vida doutra pessoa. A pessoa
deve amar-se a si mesma bem como amar aos outros, conforme está subentendido no
mandamento de amar aos outros como a si
mesmo (Mt 22: 39; cf. Ef 5:29).9 E se amar a outra pessoa
subentende que não se deve assassiná-la, amar a si mesmo decerto subentende a
mesma coisa no que diz respeito ao suicídio. O suicídio é errado porque é o
assassinato de um ser humano feito à imagem e semelhança de Deus, ainda que
este indivíduo seja a própria pessoa.10
B. O Suicídio em Prol dos Outros
Visto que o suicídio egoísta é errado, falta
perguntar se o suicídio sacrificial é certo nalgum caso. Ou seja: é certo,
nalgum caso, tirar sua própria vida por amor à conservação de outras vidas? A
resposta dependerá de se é, realmente, feito para salvar outras vidas.
1.
Nem Todo Assim-Chamado
Suicídio “Sacrificial” É Justificável — Há casos em que sacrificar sua vida em
prol doutros homens não é realmente moralmente certo. Paulo deu a entender que
seria possível entregar seu próprio corpo para ser queimado e ainda lhe faltar
o amor verdadeiro (1 Co 13:3). Noutras palavras, nem toda morte “pelos
outros” é, realmente, em prol dos outros. Pode ser uma tentativa para
atrair a atenção a si mesmo, ou gratificar alguma outra necessidade egoísta. O
suicídio pode ser um teste de sinceridade da pessoa, mas a sinceridade não é
prova alguma da moralidade. Os homens podem odiar sinceramente, bem como amar
sinceramente. Os homens podem fazer sinceramente aquilo que desejam fazer, ao invés daquilo que devem fazer. Que futilidade quando um
homem prova sua sinceridade pela sua própria causa egoísta mediante o suicídio!
Pode ser admirável sacrificar sua vida por uma causa, mas não é necessariamente
moral. Se, pois, a causa da pessoa é vã, seu sacrifício também é vão, quer seja
o sacrifício supremo, quer não.
Além disto, sacrificar sua vida deliberadamente por
um animal, ou por objetos não-pessoais (riquezas ou o que for), não é
moralmente certo. As pessoas são mais valiosas do que as coisas. As pessoas são
de valor intrínseco; as coisas têm valor instrumental para pessoas. O homem é
um fim, mas animais e coisas são meios para fins humanos. Logo, o suicídio
sacrificial em prol de um objeto não-humano seria errado, porque sacrifica o
valor superior (uma vida humana), em prol da vida inferior (uma vida
sub-humana).11
2.
Determinado tipo de Suicídio
Sacrificial É Justificável —
Nem todo o suicídio é errado. Conforme nota a Bíblia, alguns até
mesmo ousam morrer por bons homens (Rm 5:7). A história, especialmente a história
militar, contém muitos exemplos de homens dispostos a morrer pelos outros. A
história da morte de Sansão parece ser uma de um suicídio divinamente aprovado
(Jz 16:30). Há outras intimações no Novo Testamento de um suicídio sacrificial
(cf. Rm 5:7). Paulo indicou sua disposição de sacrificar sua vida por Cristo
(Fp 1:23). No entanto, a prova real de que o suicídio sacrificial está
moralmente certo é a morte de Cristo que veio “… dar a sua vida em
resgate por muitos” (Mc 10:45). Jesus disse: “Eu dou a minha vida
para a reassumir. Ninguém a tira de mim; pelo contrário, eu espontaneamente a
dou” (Jo 10:18). Decerto este é o exemplo supremo do sacrifício supremo.
Foi em vista disto que João escreveu: “Nisto conhecemos o amor, em que
Cristo deu a sua vida por nós; e devemos dar nossa vida pelos irmãos” (1
Jo 3:16). Realmente, é à luz da cruz de Cristo que a forma mais alta do amor é
revelada. “Ninguém tem maior amor do que este,” disse Jesus, “de
dar alguém a própria vida em favor dos seus amigos” (Jo 15:13). Este tipo
de “suicídio” sacrificial não somente não é imoral; é o ato moral mais alto possível. Vai além das
exigências da lei moral, que exige que a pessoa ame seu próximo apenas como a si mesmo. O “suicídio”
sacrificial verdadeiro é mais do que isso; é amar aos outros mais do que a si mesmo. Não há amor
maior.
Talvez alguns objetem ao uso da palavra
“suicídio” nesta conexão. Podem argumentar que o sacrifício da sua
vida em prol doutras pessoas não é suicídio. O soldado que cai por cima de uma
granada para salvar seus companheiros não está se suicidando, pode ser
argumentado. É verdade. Há uma diferença entre o suicídio egoísta e aquilo que
chamamos de suicídio sacrificial, e somente este último é moralmente
justificável. Se a pessoa quer usar a palavra “suicídio” ou não, a
respeito de tal sacrifício, é questão da escolha de palavras. Seja qual for o
nome que se lhe dá, é um ato de iniciativa própria de salvar outras vidas por
meio de sacrificar sua própria. É deixar sua própria vida, de modo intencional
porém justificável. Tendo em vista este fato, parece apropriado chamá-lo de
“suicídio sacrificial.”
III. UMA ÉTICA CRISTÃ DA PENA CAPITAL
Muita controvérsia tem surgido em torno da pena
capital. De um lado, tem sido saudada como sendo divinamente instituída e
socialmente necessária. Do outro lado, tem sido rotulada de bárbara e
anti-cristã.12 É moralmente correto, em qualquer caso, tirar a vida
doutro ser humano por razões sociais? Tirar a vida deve ser usado como
penalidade em alguma ocasião? O que as Escrituras dizem sobre o assunto?
A. A Base Bíblica para a Pena
Capital
Há várias passagens diferentes da Escritura que
ensinam que Deus instituiu a pena capital para certos crimes sociais hediondos.
Estas passagens se acham nos dois Testamentos.
1.O Antigo
Testamento e a Pena Capital — A
primeira referência à pena capital acha-se em Gênesis 9:6. Noé e sua família
sobreviveram ao grande dilúvio, que foi precipitado pela maldade e pela
violência daquela civilização antediluviana (cf. Gn 6:11). Quando Noé emergiu
da arca, Deus lhe deu a seguinte injunção: “Se alguém derramar o sangue do
homem, pelo homem se derramará o seu; porque Deus fez o homem segundo a sua
imagem.” O assassinato é errado porque é matar Deus em efígie, e quem
tirar a vida dos outros homens deve ter sua vida tirada pelas mãos dos homens.
Os antediluvianos tinham enchido o mundo com violência e derramamento de
sangue. Pelo uso da pena capital os homens deveriam abafar a violência e
restaurar a ordem da justiça. Deus instituiu a ordem e a paz sociais e deu ao
governo a autoridade sobre a vida para garantir à humanidade estes benefícios.
Sob a lei mosaica a pena capital foi continuada e até
mesmo expandida. O princípio básico era “vida por vida, olho por olho,
dente por dente” (Êx 21:25). A pena capital era usada para outros crimes
além do assassinato. O adúltero e a adúltera deviam ser igualmente apedrejados
até morrerem. (Lv 20:10). Na realidade, até mesmo um filho teimoso e rebelde,
que recusava a correção, devia ser morto, pelo mesmo método às mãos dos
cidadãos (Dt 21:88ss.). Mediante a direção de Deus, Acã e sua família foram
apedrejados por desobedecerem ao mandamento de Deus no sentido de não tomar
despojos da batalha de Jericó (Js 7:1, 26).
Há indicações de que Deus delegou a autoridade sobre
a vida para as nações fora de Israel no Antigo Testamento. Declara-se que
governantes humanos em geral são estabelecidos por Deus. Tanto Nabucodonosor
(Dn 4:17) quanto Ciro (Is 44:28) receberam autoridade da parte de Deus sobre as
vidas humanas. De fato, há indicações noutras partes do Antigo Testamento, no
sentido de que o governo humano em geral recebe tal autoridade da parte de Deus
para resistir ao mal no mundo, conforme foi declarado em Gn 9:6.
2.O Novo
Testamento e a Pena Capital —
O Novo Testamento pressupõe o mesmo conceito básico sobre a pena
capital que aparece no Antigo Testamento. Os governantes são instituídos por
Deus; pela autoridade divina, recebem a espada bem como a coroa (cf. Rm
13:1-2). Paulo notou sobre o governante “… não é sem motivo que ela traz
a espada; pois é ministro de Deus, vingador, para castigar o que pratica o
mal” (v. 4).
Às vezes passa despercebido que Jesus reafirmou o
princípio da pena capital no Seu Sermão da Montanha. “Não penseis que vim
revogar a lei ou os profetas: não vim para revogar, vim para cumprir.”
Continuando, Jesus acrescentou: “Ouvistes que foi dito aos antigos: ‘Não
matarás;’ e: ‘Quem matar estará sujeito a julgamento (pela pena capital).’ Eu,
porém, vos digo que todo aquele que (sem motivo) se irar contra seu irmão
estará sujeito a julgamento” (Mt 5:21, 22). De acordo com Josefo (Antiguidades IV, 8, 6, e 14), o
Sinédrio ou Concilio dos Setenta, tinha o poder para pronunciar a sentença da
morte, e às vezes o exercia, conforme
fica manifesto no caso de Estêvão (At 7:59) e na execução de Tiago (At 12:1,
2). Sem dúvida era assim, pois Jo 18:31 diz que Roma tirara o direito legal dos
judeus de aplicarem a pena capital. Isto não significa, no entanto, que os
judeus tinham aberto mão da sua crença de que Deus lhes dera esta autoridade e,
portanto, que poderiam exercê-la quando pensavam que conseguiriam fazê-lo
impunemente.13
Dentro da igreja apostólica neotestamentária parecia
haver em vigor um tipo de pena capital. Ananias e Safiras foram condenados à
morte pelo apóstolo Pedro por “mentir ao Espírito Santo” (At 5:3).
Embora não haja indicação de que esta aplicação específica da sentença da morte
não é limitada aos apóstolos originais, mesmo assim é prova clara de que o Deus
do Novo Testamento executou uma sentença de morte em homens culpados através
doutros homens.
Noutra passagem, Jesus reconheceu a autoridade dada
por Deus sobre a vida humana que os governantes humanos possuíam. Pilatos disse
a Jesus: “Não sabes que eu tenho autoridade para te soltar, e autoridade
para te crucificar?” Jesus respondeu: “Nenhuma autoridade terias
sobre mim, se de cima não te fosse dada” (Jo 19:11). A implicação aqui é
que Pilatos realmente possuía autoridade divinamente derivada sobre a vida
humana. Más, exerceu-a (Jesus foi sentenciado à morte) e Jesus Se submeteu a
ela.
Resumindo: há dados bíblicos amplos, dos dois
Testamentos, que mostram que Deus ordenou, e os homens exerciam a pena capital
para delitos específicos. A pena de morte é instituída por Deus, através dos
homens, contra os culpados. Logo, a pergunta, de uma perspectiva rigorosamente
bíblica, não é se a pena capital era
e é autorizada por Deus para os homens, mas quando
e porque. Mas antes da discussão
da aplicação e da base lógica da pena capital, é apropriado dizer uma palavra
sobre algumas objeções à pena de morte.
B. Algumas Objeções à Pena de Morte
Várias objeções à pena de morte têm sido oferecidas
por aqueles que se opõem a ela. Três destas são dignas de comentários, de um
ponto de vista bíblico.
1. O Caso de Caim — Às vezes é argumentado que a pena capital não
era a intenção de Deus desde o início, conforme pode ser deduzido da
intervenção de Deus para poupar Caim dela. Quando Caim matou seu irmão, Abel,
Deus explicitamente proibiu qualquer pessoa de matar Caim por sua vez. Disse:
“Assim qualquer que matar Caim será vingado sete vezes” (Gn 4:15).
O que é facilmente olvidado nesta isenção óbvia da
pena capital é que a passagem claramente subentende a validez da pena capital.
O caso de Caim era especial.14 Quem teria executado a sentença? O
irmão dele estava morto. Decerto Deus não iria chamar o pai para executar seu
filho remanescente! Nesta situação o próprio Deus pessoalmente comutou a
sentença da morte.
No entanto, quando Deus suspendeu a pena da morte de
Caim, a Bíblia claramente indica que esta não seria a regra. Vários fatores
apoiam esta conclusão. Primeiramente, o próprio Senhor disse: “A voz
dosangue de teu irmão clama da terra a mim” (Gn 4:10). Clama para que?
Para a justiça, sem dúvida. O princípio bíblico é que somente outra vida pode
satisfazer a justiça de uma vida perdida (cf. Lv 17:11; Hb 9:22). Em segundo
lugar, o temor de Caim de que alguém no futuro o mataria demonstra que a pena
capital era sua própria expectativa natural. “Quem comigo se encontrar me
matará,” exclamou. (Gn 4:14). A pessoa naturalmente prevê a perda da sua
própria vida como consequência de tirar a vida doutrem. Em terceiro lugar, a
resposta de Deus a Caim subentende a pena capital: “Assim qualquer que
matar a Caim será vingado sete vezes.” Isto, sem dúvida, significa que a
pena capital seria usada contra qualquer pessoa que matasse a Caim. Destarte,
de modo contrário àquilo que talvez pareça na superfície, o caso de Caim é a
“exceção” que comprova a regra. Desde o princípio, era a intenção de
Deus de que os crimes capitais recebessem penas capitais.
2.Jesus e a
Mulher Adúltera — Jesus
não demonstrou seu desdém para com a pena capital, ao recusar-Se a aplicar a
sentença vétero-testamentária da morte a uma mulher apanhada em adultério?
Cristo não lhe disse: “Vai e não peques mais” (Jo 8:11)? Moisés
ordenou a pena capital para os adúlteros; Jesus os perdoava. Não é, portanto,
mais cristão acabar com a pena capital e exercer o amor que perdoa?
A primeira coisa a notar ao procurar responder a esta
objeção é que a passagem sendo considerada é textualmente suspeita (Jo
7:53-8:11). É achado em lugares diferentes nos manuscritos antigos.15
Certamente interrompe a narrativa aqui (leia Jo 8:12 imediatamente após 7:52).
Embora haja evidência textual sólida para questionar a autoridade desta
história, suporemos sua autenticidade para os fins desta discussão.16
Na realidade, nada há nesta passagem contra a pena
capital. Jesus declarou que nunca quebrou a lei de Moisés (Mt 5:17) e não há
prova aqui que o fez. Moisés ordenara a morte somente se houvesse duas ou três testemunhas oculares (Nm 35:30).
Não havia ninguém aqui que alegasse (no fim) ser testemunha ocular, ou que
quisesse levar adiante as acusações. Depois de todos eles terem saído, Jesus
perguntou explicitamente a ela: “Mulher, onde estão aqueles teus
acusadores? ninguém te condenou? Respondeu ela: Ninguém, Senhor” (w.
10—11). Na base de “falta de testemunhas,” nenhuma sentença foi
exigida. A mulher enfrentou seu processo corretamente diante do salvador.
3.A Cruz de
Cristo e a Graça Perdoadora —
Há outro argumento, mais sofisticado, contra a pena capital que
alega que, tendo em vista a cruz de Cristo e a graça perdoadora agora (nos tempos neotestamentários) é
anti-cristão distribuir a justiça como se Deus não tivesse dado perdão a todos
os homens. Esta objeção sustenta que a pena capital é baseada num conceito
sub-cristão ou pré-cristão da justiça, que é transcendido por uma moralidade
neotestamentária da graça. Deus não deseja castigar os homens, muito menos com
a pena capital; pelo contrário, Deus quer perdoar os homens através de Cristo.
Todos os nossos crimes foram pregados à Sua cruz (Ef 2:15, 16). A lei foi
cumprida por Cristo, no preceito e na penalidade (Mt 5:17; Gl 3:13). Visto que
a justiça de Deus foi satisfeita pelo sacrifício de Cristo, não há necessidade
dos homens pagarem a penalidade pelos seus pecados. Deus oferece o perdão a
todos e por tudo.
Basicamente, esta objeção à pena capital é baseada
num entendimento erróneo da graça. Perdoar um pecado não rescinde
automaticamente os resultados daquele pecado. Um bêbado que confessa seu pecado
não tem direito algum de esperar que Deus tire sua ressaca. Um motorista
estouvado que danifica seu próprio corpo não deve esperar a saúde e integridade
física anteriores à trombada, imediatamente ao confessar. Á graça de Deus cuida
da penalidade do pecado do homem, mas
nem sempre das consequências imediatas.
“Não vos enganeis,” escreveu Paulo: “de Deus não se zomba; pois
aquilo que o homem semear, isso também ceifará” (Gl 6:7). Isto se aplica
ao cristão. Quando os santos de Corinto abusaram da Ceia do Senhor, Deus os
visitou com doenças e até mesmo com a morte (1 Co 1130).
Se o perdão do pecado também significasse a
eliminação de todas as suas consequências, decerto os homens pecariam mais a
fim de que a graça abundasse. Faz parte da graça de Deus que Ele nos ensina a
não pecarmos mais. Realmente, a evidência mais clara de que Deus não elimina
automaticamente os resultados dos pecados que Ele perdoa é o fato de que até
mesmo os cristãos morrem. A morte passou a todos os homens, porque todos
pecaram (Rm 5:12). E tornar-se um cristão não cancela esta consequência do
pecado. Até mesmo os melhores cristãos morrem como resultado do pecado — pecado
perdoado.
Se a cruz não elimina automaticamente as
consequências imediatas e sociais do pecado da pessoa, logo, a objeção à pena
capital baseada nesta premissa cai por terra. Na realidade, há uma implicação
mais séria a esta objeção inteira que precisa ser examinada. Há um tipo radical
de dispensacionalismo subentendido no argumento de que o sistema divino da
justiça moral não é o mesmo nos dois Testamentos. Cristo não aboliu a lei moral
do Antigo Testamento. Cada um dos Dez mandamentos é reafirmado no Novo
Testamento.17 Mesmo debaixo da graça é errado assassinar, mentir,
furtar, adulterar. Quando o Novo Testamento declara que o cristão “não
está debaixo da lei mas, sim, debaixo da graça,” significa que a
codificação e aplicação peculiarmente mosaicas à nação de Israel, dos
princípios morais imutáveis de Deus, foram cumpridas por Cristo. Isto, no
entanto, não significa que as normas éticas incorporadas nos Dez Mandamentos
são abolidas pela cruz. A mesma lei moral básica da justiça divina de Deus está
em vigor tanto no Antigo quanto no Novo Testamento. Nem Deus, nem a lei moral,
que reflete Sua natureza, mudaram. E, quanto a isto, nem o plano divino da
graça mudou-se de um Testamento para outro. No Antigo Testamento, os homens
eram salvos pela graça mediante a fé exatamente como no Novo Testamento (cf. Rm
4:6-7; Hb 11:6). Paulo declarou enfaticamente que há um só Evangelho,
pronunciando o anátema mesmo a um anjo que viesse pregar um evangelho diferente
(Gl 1:6-9). Mas naquela mesma Epístola escreveu que este Evangelho fora pregado
a Abraão (3:8). Há uma só lei moral para os dois Testamentos, e há somente um
plano de graça salvadora. Qualquer objeção à pena capital baseada numa mudança
dispensacional ou na justiça de Deus ou na Sua graça está biblicamente numa
base muito duvidosa.
C. A Base Lógica para a Pena Capital
Algumas das objeções sociais à pena capital
baseiam-se não tanto no uso quanto no
abuso do poder da pena capital. Mas o
fato de que erros serão feitos por seres humanos falíveis na aplicação deste
castigo não é um bom argumento para aboli-lo completamente. Os médicos cometem
erros fatais e assim também os políticos, mas estes erros não são boas razões
por acabar com a prática da medicina ou do governo. O abuso do casamento
mediante um divórcio injustificado não quer dizer que a instituição do
casamento não é divinamente
estabelecida. Muitos indivíduos cometem erros fatais, mas seu julgamento
falível não elimina a necessidade dos homens exercerem bom juízo ao aplicarem a
justiça social e moral. Naturalmente, a pena capital não deve ser executada
nalguém que não recebeu um processo jurídico correto e cuja culpa não esteja
além de toda a dúvida razoável. Do outro lado, aquele cujo crime é tão
hediondo, que exige a pena capital, não deve ser poupado mediante a alegação
falaz que é injusta ou contrária à graça. É injusto não distribuir a justiça
quando a injustiça clama por ela.
A administração
da justiça é outra questão. O que é de interesse na ética normativa não é a
aplicação (ou aplicação errónea) da justiça, mas, sim, o próprio princípio da
justiça, que às vezes exige a pena capital. Uma das implicações por detrás
dalgumas objeções sociais à pena capital é que é desumano ou injusto castigar
os homens desta maneira pelo seu delito. A ação social para os criminosos não
deve ser penal mas, sim, reformadora, argumenta-se. O conceito do castigo é
sub-cristão ou bárbaro. Os homens civilizados devem procurar reconciliar os
homens, mas não destruí-los. Não há lugar para um castigo tão grosseiro entre
homens civilizados, diz-se.
Reconhecendo-se a verdade de que, sempre que
possível, os homens devem ser reformados, há algumas inconsistências estranhas
nos argumentos supra contra a pena capital. Primeiramente, pressupõe-se um tipo
bíblico de justiça para dizer que o conceito bíblico da pena capital é injusto.
O padrão da justiça que exige a pena capital não pode ser usado para negar o
que o padrão exige. Segundo, há uma estranha mudança lógica no chamar a pena
capital de desumana. Foi a desumanidade, na forma do crime, que exigiu as
consequências capitais. O ato desumano foi realizado pelo criminoso no ato do assassinato, não contra o criminoso na pena capital. lógica chamar a pena capital de
desumana. Foi a desumanidade, na forma do crime, que exigiu as consequências
capitais. O ato desumano foi realizado pelo
criminoso no ato do assassinato, não contra
o criminoso na pena capital.
O fato da questão é que a própria pena capital pode
ser um ato muito humanitário. Pode ser um tipo de eutanásia, ou seja, um tipo
de misericórdia à sociedade para garantir que este criminoso não repetirá o
crime que cometeu. O alívio social em saber que os homens estão livres dos
sanguinários é uma dádiva de misericórdia para o restante da humanidade. Que
tipo de humanitarismo pervertido é este, que tem mais solicitude com a vida de
um único homem culpado, do que com as vidas de muitos homens inocentes? Em nome
da misericórdia para os homens em geral, poder-se-ia apresentar uma petição
forte a favor da pena capital por certos crimes que têm probabilidade de serem
repetidos.
Além disto, pode ser argumentado que a
irreformabilidade de certos criminosos é uma das razões para a pena capital. O
Antigo Testamento, por este motivo, exigia a execução de um filho rebelde e
incorrigível (Dt 21:18). Quando se calcula a enormidade da tristeza e da morte
que podem ser trazidas sobre homens inocentes por um só ser humano incorrigível,
talvez haja mais bom-senso na lei de Moisés do que a justiça social
contemporânea indulgente está disposta a reconhecer.
A irreformabilidade, no entanto, não é a única razão
para a pena capital. Na realidade, provavelmente não é a razão básica. A justiça é a razão primária para a pena
capital. A pena capital obviamente não
pretende reformar o criminoso; é um castigo. Naturalmente, um sub-produto da
pena capital pode ser dissuadir os outros de cometerem o mal. Isto, porém, está
aberto a dúvidas. Visto que para todos os fins práticos, um criminoso
contemporâneo que está para cometer um assassinato não tem qualquer razão real
para esperar vir a ser punido com a morte é provavelmente impossível fazer um
teste social verdadeiro de se a ameaça real da pena capital dissuadiria o
criminoso. Parece, porém, que a Bíblia subentende que o castigo visa dissuadir
os malfeitores (cf. Rm 13:3). A razão primária para a pena capital, no entanto,
é que a justiça a exige. Uma ordem justa é perturbada pelo assassinato, e
somente a morte do assassino pode restaurar aquela justiça. A restituição não é
possível pelo assassinato, e a reforma pode, na melhor das hipóteses, apenas
garantir que o mesmo ato, pelo mesmo homem, não ocorrerá outra vez. Mas nada
satisfez a justiça no que diz respeito ao primeiro assassinato. Deus pode perdoá-lo, mas até mesmo Deus não pode justificar o pecado. Na realidade, nada
chega a realmente justificar o pecado. O pecado sempre é injustificável. Não se
quer dizer com isto que não possa ser perdoado. Pode ser perdoado mediante
Cristo. Nem se quer dizer que não há satisfação para a justiça contra a qual se
pecou. Há uma só coisa que satisfaz uma justiça ofendida, e esta é o pagamento
da dívida à justiça. E o pagamento bíblico para o assassinato é a vida da
pessoa. A vida pela vida, o sangue pelo sangue, é a regra. A penalidade por
tirar a vida doutro homem é dar sua própria vida.
A razão porque esta base lógica talvez soe estranha
ao ouvido moderno é que a verdadeira sentido da justiça foi obscurecido. Quando
os homens já não crêem em Deus nem numa lei moral imutável, segue-se que
nenhuma penalidade deve ser incorrida por transgredir uma lei que não existe.
Juntamente com esta distorção contemporânea da justiça há um conceito anêmico
do amor. Um Deus amoroso não castigaria pessoa alguma, pensa-se de modo vão.
Conclui-se daí, que um pai amoroso não deve disciplinar seu filho. Não admira
que os homens não entendem a necessidade da pena capital; não vêem a
necessidade de qualquer tipo de castigo. Deixam de ver que os pais amorosos
castigam seus filhos (Pv 13:24) e que um Deus amoroso disciplina Seus filhos
(Hb 12:5, 6).18 Na realidade, quase o inverso da mentalidade moderna
é o caso. A Bíblia ensina que o castigo apropriado é prova do amor. O amor está na
disciplina. A falta de correção é uma indicação da falta de verdadeira
solicitude para com os teimosos.
Uma consideração final deve ser feita em resposta â
alegada desumanidade da pena capital. A pena capital, contrariamente àquilo que
alguns assim-chamados humanistas nos levariam a crer, realmente subentende mais
consideração para corri o indivíduo. O homem individual é a imagem de Deus, e
por isso é errado matá-lo (Gn 9:6). O homem é tão valioso como indivíduo, que
qualquer pessoa que interfere indevidamente com seu direito sagrado de viver
deve enfrentar as consequências de perder sua própria vida. O valor do
indivíduo é tão grande que a penalidade máxima é aplicada àqueles que
interferem indevidamente com a vida de, até mesmo, um só homem.
IV. O HIERARQUISMO E TIRAR OUTRAS VIDAS
O problema de quando e porque é certo tirar outras
vidas não é fácil. A tensão é resolvível, no entanto, quando é aplicada, uma
ética hierárquica. Matar é justificável
quando muitas vidas podem ser salvas quando menos são sacrificadas, ou quando
vidas completas são preservadas em preferência às incompletas, ou quando uma
vida real é preferida a uma vida em potencial. Até mesmo o suicídio para salvar
mais vidas é preferível. Os princípios básicos por detrás destas conclusões
são: (1) as pessoas são mais valiosas do que as coisas; (2) muitas vidas são
mais valiosas que menos vidas; (3) pessoas reais são mais valiosas do que
pessoas em potencial; (4) pessoas completas são mais valiosas do que pessoas
incompletas.19
É por causa do valor intrínseco das pessoas que o
assassinato é errado. E é porque o assassinato é um grave delito contra o valor
intrínseco da outra pessoa, e da Pessoa de Deus que o ser humano reflete, que a
penalidade é tão grande. O castigo capital não é impessoal ou anti-humano. É
pró-humano. Ao remover o anti-humano, vindica-se o valor da pessoa individual.
A esta altura fica mais simples ver a aplicabilidade doutro princípio do
hierarquismo, viz., (5) o que promove o interpessoal é mais valioso do que
aquilo que não o promove. É por isso que a pena capital para Eichmann foi um
ato muito pessoal. A sentença de morte para quem foi o cérebro por detrás do
plano para aniquilar uma raça é uma maneira eminentemente apropriada de trazer
esta carreira eminentemente anti-pessoal a um fim justo. Castigar o impessoal e
o anti-pessoal não é impessoal em si mesmo. Pelo contrário, é uma vindicação do
valor intrínseco de cada pessoa. Não castigar o anti-pessoal é um ato
impessoal. Recusar-se a intervir com a justiça quando o valor intrínseco de
pessoas inocentes é violado é uma ética altamente impessoal. A pena capital,
aplicada com justiça, pode ser uma expressão de uma ética muito centralizada na
pessoa.
Em síntese, a pena capital é requerida nos crimes
capitais para proteger o valor intrínseco do direito de viver da pessoa
individual. Além disto, a sentença da morte pode ser justificada em crimes menos
do que capitais, quando as vidas de mais pessoas inocentes estão em jogo se o
homem mau viver. Fora dos crimes capitais ou atividades que decerto levariam à
morte dos homens inocentes, o estado não tem nenhum direito divino de exercer a
pena da morte. É uma responsabilidade séria para um governo carregar a espada,
e deve tomar cuidado para não fazê-lo em vão.
conteudo retirado do livro: Ética Cristã – Norman Geisler